sábado, 21 de novembro de 2009

AS TRÊS PORQUINHAS E O LOBO COR-DE-ROSA

Numa madrugada bastante quente, num escuro porão de uma pequena casa, numa rua bastante deserta, de uma cidade muito pequena, a mamães porca deu a luz a vinte e três leitõezinhos. Foi uma alegria imensurável na casa. O papai porco ficou muito contente, comprou caixas e mais caixas do melhor charuto, para distribuir aos amigos. Dizia ele que agora sim seu sangue seria transmitido para a eternidade. Durante aquele dia aconteceram alguns fatos interessantes, que mudariam o rumo de nosso singelo conto de fadas. Vamos a eles então.

Na primeira hora após o nascimento, o pai, em sua alegria e  contentamento por ter uma prole tão  extensa, correu ao porão para abraçar a mamãe porca e pisoteou treze leitõezinhos. Que desgraça, o motivo de tanta alegria se tornara abruptamente um motivo de tristeza. Estavam lá, no mesmo dia do nascimento, treze pequenos caixõezinhos para enterrar os presuntos. Dos dez que sobraram, duraram apenas até às seis da tarde, pois a mamãe num ataque histérico de fome, tresloucada, num momento de pura e sintética crise de gulodice aguda,pisoteou mais sete leitõezinhos. Foi uma tristeza geral na casa. Mais sete caixõezinhos, foi muito difícil para o papai porco. Todos os vizinhos enviaram flores e condolências à família. Mamãe e Papai porco então resolveram que aqueles três que sobraram deveriam ser cuidados como se estivesse m e uma redoma de vidro.

Às dez da noite, lembraram-se que ainda não tinham batizado os danadinhos e nem tinham visto ainda se eram meninos ou meninas, digo, leitões ou leitoas. Pra surpresa e felicidade geral, eram três lindas leiotoazinhas. Nova alegria e uma grande festa pra comemorar a sobrevivência delas. Esse dia ficou marcado na história da família porco e trinta e cinco anos depois ainda seria lembrada com saudades pelas ilustres heroínas de nossas história.

Num dia de domingo, de bastante calor, Flávia, Marilene e Aderlei, esse era o nome delas, resolveram que estava na hora delas romperem com os laços familiares e que já não aguentavam viver às custas do pai, que por sua vez estava um porco muito chato e gordo. Nem pediram autorização, apenas arrumaram suas malas, que não eram poucas, e saíram, sem rumo. O vento na cara e o gosto pela liberdade.

Haviam andado mais de dois quilômetros e meio e do alto dos seus cento e oitenta quilos, Flávia decretou que não mais moveria um passo. Estava muito cansada e seus pés estavam em carne viva de tanta bolha de sangue. Minha nossa!! Abram um parentes nesse ponto, caros leitores, como era gorda essa Flávia... mas voltemos à nossa historieta. Bem, naquele ponto ficou Flávia, a mais gorda e preguiçosa das três. Ali ela ficou, olhou ao seu redor... e um pouco abaixo de onde estava havia um pequeno rio e ela pensou: "Temos um rio, e rio significa água, água significa bastante comida nas margens, significa também que em algum lugar deve existir uma ponte e ponte significa casa de graça". Com esse pensamento ela caminhou rio abaixo até encontrar uma ponte, onde estabeleceria sua residencia, com sombra, comida e água fresca.

As outras duas leitoas, que não mais podemos colocar no diminutivo, caminharam mais dois  quilômetros e meio e foi a vez de Marilene protestar. Ela, aos berros, falou à sua irmã: Daqui num saio e daqui ninguém me tira. Ela ficou então. Aderlei seguiu sozinha sua jornada. Na rua, sozinha, Marilene pôs-se a pensar no que faria da vida, agora que estava sozinha. Olhou ao seu redor pra se localizar e viu no final da rua uma grande oportunidade de se dar bem. Uma casa de madeira vazia e ela não pensou duas vezes, foi até lá, arrombou a porta e tomou posse, como se aquilo fosse terra de ninguém. Aquela casa seria seu castelo dali em diante.

Aderlei, a que persistira em sua caminhada, seguiu por um longo tempo, pra dizer a verdade mais dois quilômetros e meio, e parou também. Mas essa era uma porquinha diferente das outras duas e ela tinha outra ideia do mundo. Resolveu então pedir emprego, pois o trabalho poderia dar tudo o que ela precisava naquele momento. Trabalhou durante algum tempo servindo cafezinho numa multinacional até que se envolveu com um senador da república, o famoso Doutor Leitão. Sua vida mudou completamente e foi morar numa mansão.

Esse foi o destino destas três irmãs. Mas como tudo na vida muda e se transforma. Um dia apareceu na história um lobo, mas esse lobo não era mal, ele se autodenominava o representante número um do movimento GLBT e esse lobo cor-de-rosa era amigo íntimo do Senador, o Dr Leitão, que inclusive e não muito de se estranhar esse relacionamento, acreditava-se que o tal senador era do mesmo movimento. Eis que a imprensa deu um fragrante no digníssimo político com o lobo-cor-de-rosa num motel e o escândalo foi inevitável. Televisão, jornais, rádios e revistas deram a noticia. Acabaram com a carreira política de tão promissor homem público. Abriram uma CPI no congresso nacional para investigar quem pagava por essas orgias sexuais. E isso foi o fim dele, convocaram até a pobre da Aderlei pra depor. Ela por sua vez, meteu os pés pelas mãos e disse que mantinha um relacionamento de muito tempo com o réu e que era ele quem bancava suas despesas.

Bem, sem mais delongas, o relator da CPI, pediu a cassação do senador e este teve que devolver todo o dinheiro desviado aos cofres públicos. O senador, sem dinheiro no bolso e com um furo no sapato foi morar com Aderlei. Viveram alguns dias felizes até que bateram em sua porta. Quando abriram tiveram uma ingrata surpresa. O lobo cor-de-rosa estava ali parado, com aqueles olhos enormes, orelhas enormes e boca com dentes enormes e logo foi falando: Eu fui enganado, ultrajado e despejado e agora também quero minha parte, comunico que vou morar com vocês. Os donos da casa ainda tentaram objetar, mas não adiantou, o lobo entrou e se abancou.

Passaram-se alguns meses e chegou pelo e-mail um aviso de despejo. Foi um total desespero e nossos três amigos ficaram sem saber o que fazer, correndo como barata tonta pela casa. Decidiram não sair e resistir até o fim. Até que chegou o fatídico dia e o oficial de justiça veio acompanhado de inúmeras viaturas da polícia para executar a ordem judicial. Não teve jeito, foram gentilmente colocados pra fora através de chutes, pancadas e pontapés. Desolados, tristes e deprimidos caminharam sem rumo durante algum tempo até que Aderlei lembrou de sua irmã Marilene e correram até ela para pedir abrigo.

Ao chegar lá, bateram na porta, não abriu. Bateram de novo e a porta foi ao chão. Marilene então, meio dormindo, meio acordada, declarou solenemente sua surpresa com a visita. E o lobo cor-de-rosa foi logo dizendo: Estamos aqui pra ficar, e nem adianta reclamar, não temos pra onde ir.

Ficaram junto com Marilene apenas um dia, pois poucas horas depois, o lobo fumava um cigarro bem tranquilamente abancado no sofá e deixou cair a bituca no estofamento. Rapidamente virou um foguinho e ele pulava e gritava e sapateava mas o fogo não apagava. Logo virou um fogaréu e os quatro tentaram em vão apagá-lo. A casa foi ao chão em questão de minutos tomada pela desgraça do fogo.

Assim, estavam novamente na rua, desta vez levando Marilene junto. Os quatro perambularam pelas ruas até o outro dia, quando diante de uma encruzilhada, avistaram um rio e logo se lembraram do raciocínio de sua irma, mais gordona e ficaram muito contentes. Seguiram até o rio e foram descendo até encontrar a ponte, onde Flávia morava. A chegada dos quatro foi uma surpresa pra Flávia, mas esta recebeu os convidados com muita gentileza.

- Que bom que vocês vieram me fazer uma visitinha.
- Visitinha que nada, você é que vive bem, com sombra, comida e água fresca. - Disse o lobo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Pré Conceito


A vida em uma pequena cidade do interior é realmente surpreendente. Em grande cidades também acontece. Cada dia encontramos, surpresos, coisas que nos fazem refletir sobre questões bastantes complexas, que mexem e interferem diretamente naquilo que somos e que por sua vez interferem indiretamente naqueles comportamentos que, muitas vezes, execramos, mas que involuntariamente acabamos por adotar.
O preconceito, ou seja, os juizos que formamos antecipadamente é algo que as pessoas insistem em afirmar e reafirmar que não existe. Mas é um conceito que escorre como areia entre os dedos, quando se trata da realidade, e esta muitas vezes coloca o sujeito diante de si mesmo como vilão, mesmo sem ele perceber.
Poderia ser mais simples, se admitíssemos que não gostamos do diferente, pois ele não pertence ao mesmo círculo social, não mora numa casa que mereça esse nome, seus filhos não vestem roupa e nem calçam tênis de marca, não tem os melhores brinquedos. Mas isso jamais vai ser admitido, pois a verdade é muito dolorosa para dizer, e ninguém tem coragem de encará-la.
É por isso que em nosso podemos facilmente perceber a exclusão social tão claramente, porque as pessoas negam aquilo que sentem e justificam isso com a afirmação de que são totalmente contrárias ao preconceito.
Mas ele existe, está aí, escancarado em nossas caras. Não há como negar. Quando acabar de ler este texto, levante-se, vá até um espelho próximo e converse com você mesmo, abertamente, sem censura e sem medo, tente arrancar de você a verdade, seus mais profundos sentimentos, coloque pra fora. Verá que todos temos medo do diferente, exatamente por não conhecermos. Mas faça isso sozinho e se for falar em voz alta, procure sussurrar, pois se não você será pego admitindo que é preconceituoso.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Inventário

(Menção Honrosa no Concurso de Contos, Poesia e Fotografia - Servir com Arte, da Escola de Governo do Estado do Paraná)

Abriu uma gaveta, procurou incansável uma caneta ou lápis, revirou todo o quarto até que encontrou. Seus olhos brilhavam de contentamento, de posse, agora, do lápis e do caderno. Sentou-se na cama, pegou-o, ergueu-o na altura dos olhos. Anote! - disse ele com a voz estremecida de quem já não tem controle sobre seus atos e pensamentos. Abriu-o na primeira página e começou as suas anotações:

Olho, neste momento, para a parede do meu quarto. Existem inúmeros objetos pendurados. Os pregos martelados ao léu despedaçaram pedaços dela. Penduraram então retratos, alguns, de pessoas que, várias, eu não conheço. Olho agora pra um desses quadros e o que vejo não me atrai nenhum pouco. Um velho de cabelos grisalhos olhando pra mim e sorrindo. Vejo saindo de sua boca apenas uma palavra. Ouço o desenho dessa palavra e sei que nunca me deixará.

Existem mais quadros, todos eles com molduras extravagantes, umas de madeira, outras de metal, uma de madeira com cantoneiras de metal dourado e outro prateado. O espelho também está pendurado. O espelho é misterioso, pois mostra tudo aquilo que agora preciso anotar. Tudo o que quero está dentro do espelho e não consigo alcançar. Preciso descrever e ser exato. Não gosto do espelho. Sinto inveja dele. Ele tem tudo e eu não tenho nada.

À minha direita, outra parede do quarto. Há uma grande janela. E mais pregos batidos enfeitando o que ainda resta do reboco. A janela é enorme, mas eu nunca abro. Prefiro deixar que se abra sozinha. Eu exercito meus pensamentos pensando o que há através dela. Não tem cortina minha janela e não dá pra lugar nenhum. Lá fora sei que tudo é vago. Minha janela é um espelho que não quer me refletir. Fica fechada sempre. Seus vidros estão todos embaçados e eu acho melhor assim. A poeira amarelada já toma conta de todos os espaços vazios. Não posso ver através dos vidros. Vejo.

Mas o que vejo não é nítido e assim me interesso pelas coisas que não posso distinguir claramente. Não há paisagem através deles. Não há perspectivas que me levem a me interessar pela apreciação pura e simples do que não faz parte de mim. Prefiro apenas imaginar e anotar.

Na parede oposta à da janela está meu guarda-roupa. Duas portas e quatro gavetas apenas. Pintado de branco. Embaçado. Encardido. Puxadores de metal nas gavetas e portas, daqueles parecidos com alças de caixão. Do lado esquerdo do guarda-roupa fica a porta, que dá pro corredor, que vai parar na sala e por sua vez encontrar a porta que dá pro mundo. Prefiro meu quarto. A porta fica fechada. Sempre.

Do lado direito do guarda roupa fica a parede, com mais alguns pregos maltratando com os mesmos objetivos o reboco. Em alguns deles estão pendurados roupas, sacola, bolsas, etc. As roupas penduradas ali estão todas sujas, pois já não as lavo há muito tempo. Nas sacolas, posso ver daqui, estão guardadas seguramente de mim mesmo, objetos que já não uso mais.

Não me lembro exatamente quais são, mas sei que os coloquei lá. Lâmina de barbear, sapatos, pentes, escova de dente, meias, relógios, anéis, óculos... tudo ali, na segurança das sacolas penduradas nos pregos pregados em minha maltratada parede.

Voltemos ao guarda roupa.

Há atrás daquelas tão horrendas portas, que abri muito, durante muito tempo de minha vida, um vazio que finalmente consegui vencer. Vazio que esconde o excesso de coisas que me eram importantes. Não há mais nada. Antes de começar escrever, abri pela última vez aquelas famigeradas portas. Nas gavetas também não mais nada. Há muito tempo que ali não tem mais nada. Nem meias, nem ceroulas, nem nada. Olhando daqui, posso ver que existe algum objeto debaixo dele, mas não é nada com que deva me preocupar nesse momento, somente quero anotar.

Na última parede, onde me encontro agora sentado na minha cama, fica a cama. Minha eterna e única companheira de uma vida que achei que nunca chegaria ao fim. Minha cama foi e é muito firme. Feita de madeira nobre, vermelha. Muitos colchões passaram por ela sem que ao menos afrouxasse os encaixes. Aqui eu durmo.

Dormi muitas noites que não merecem ao menos serem lembradas. Passei também inúmeras noites acordado olhando apenas pro meu quarto, e ele, acordado como eu, sempre me compreendia. Entendia minhas razões. Nesta parede também há pregos. Mas aqui não há nada pendurado. Usei todos os outros pregos das outras paredes. Eles foram mais que suficientes pra eu fazer a pendurança dos trecos e coisas que já foram meus. Agora não são mais.

Pertencem a ele e elas.

Pregos e paredes donos de mim. Espelho que guarda a vida que um dia existiu nesse quarto. Quadros e retratos que mostram as verdades que não são as minhas. Guarda-roupa me dizendo neste momento, com suas portas e gavetas que eu vivi inutilmente. Mas não acredito nele. Sei que minha vida se esgota agora, mas sei também que tudo o que fiz teve um sentido, teve sentido. Anoto e isso me traz conforto. Minha vida na ponta deste lápis. Resto de esforço pra deixar algo além de um quarto. Despontado como este lápis, me entrego finalmente ao que esperei e busquei minha vida inteira. Minha cama e meu colchão, meu caixão e meu quarto, meu túmulo.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.