sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Transparência total em Kaloré

A lei complementar LC 131/2009 estabelece alguns dispositivos a respeito da transparência nas finanças dos municípios brasileiros. No caso de Kaloré, que se enquadra nos municípios com população até 50.000 pessoas, o cumprimento dessa lei tem o prazo máximo até o ano de 2013.

Vejam o que diz a lei:

Art. 1o  O art. 48 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, passa a vigorar com a seguinte redação: 
“Art. 48.  ................................................................................... 
 Parágrafo único.  A transparência será assegurada também mediante: 
I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; 
II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público; 
III – adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A.” (NR)
 Art. 2o  A Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 48-A, 73-A, 73-B e 73-C: 
Art. 48-A.  Para os fins a que se refere o inciso II do parágrafo único do art. 48, os entes da Federação disponibilizarão a qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes a: 
I – quanto à despesa: todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado;
II – quanto à receita: o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários.”


Bem, como o nosso município ainda está no prazo para a implantação de um sistema de informação ao cidadão, podemos acreditar (e cobrar) que o poder executivo atual se antecipe ao prazo estipulado pela lei e já no próximo ano o cidadão Kaloreense tenha acesso total às receitas e despesas.

Estamos de olho!!!

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Contradições divinas

Na única cruzada contra cristãos que se deu na história temos um fato (ou boato) bastante curioso. Trata-se da cruzada Albigense, liderada por Arnaldo Amauri, abade de Cister, contra a seita cátara que se propagava no sul da França. Nesta famigerada guerra contra os hereges , que pregavam a volta ao cristianismo primitivo, diante da necessidade de decidir quem era cristão e quem era herege, e consequentemente decidir quem teria sua cabeça arrancada, acabaram optando por um assassinato em massa. A justificativa para tal atitude, na época, estava no fato de que deus, do alto do seu imensurável poder saberia separar o joio do trigo, ou seja, separar os cristãos verdadeiros dos hereges ali mortos. Uma frase tornou-se famosa: “Deus reconhecerá os seus”
Pois bem. Em uma dessas madrugadas em que não conseguimos dormir, por motivos que fogem ao nosso controle, estava eu na sala. A televisão ligada e eu zapeando de um canal para outro sem nenhum objetivo. Até que, coincidência ou não, me deparei com um daqueles programas que tentam obter um comprovação cientifica para fatos citados no grandioso manual de sobrevivência cristão.
Um apresentador vestido a La Indiana Jhones falava de todos os indícios e provas que embasariam as verdades históricas por trás do já citado manual. Até nesse ponto estava interessante, afinal, como todo bom ateu, eu também aprecio assistir tais programas e ler o manual cristão para saber como me defender de lunáticos fundamentalistas.
O problema foi quando começou uma espécie de encenação, para provar todas as peripécias do povo de deus no Egito, especificamente todos aqueles milagres conhecidos como as 10 pragas do Egito.
Vamos a elas, mais por questão de relembrar quais foram, já que me prenderei apenas à última que tem ligação direta com o que quero discutir neste texto: águas se transformaram em sangue; infestações de rãs; mosquitos atormentam homens e animais; moscas escurecem o ar e atacam os animais; uma peste atinge os animais ; pústulas cobrem homens e animais; fogo no céu; nuvem de gafanhotos; escuridão por três dias e finalmente A morte dos primogênitos.
Essa última praga foi o ápice do programa. Um pequeno filme mostrava os judeus sacrificando os cordeiros para sinalizarem as portas de suas casas com uma voz, vindo sei lá de onde, dizendo que os anjos de deus precisavam saber quem assassinar, afinal não poderiam correr o risco de aniquilar os primogênitos do seu próprio povo.
Eis a questão! As conveniências ditam as regras das ações. Em um momento deus sabe exatamente o que fazer, mas em outros é necessário a ajuda das suas próprias criações pra que nada saia do roteiro. Onde está todo o seu poder? Deus deveria reconhecer os seus. 
Se não reconhece, não é deus! Se não quer reconhecer, não é tão bondoso assim!

Imagem eurocêntrica, mídia e representação do negro nas telenovelas brasileiras



É preciso compreender as construções dos estereótipos modernos para além do senso comum habitual, onde não há a emersão da problemática inicial. Há a necessidade de entender os fundamentos do eurocentrismo como alguns dos pilares justificadores dos abusos colonialistas europeus. Tais abusos, que contribuíram para a solidificação dos discursos em torno da imagem do negro e negra, se pautam na negação do outro, pela diferença, como justificativa para a auto-afirmação da superioridade européia.
Dessa forma, temos alguns discursos que conceituam o racismo como prática possível, partindo do pressuposto da necessidade de civilização de povos não brancos, sem cultura e desprovidos de inteligência. Essa prática parte do princípio exatamente contrário de superioridade dos povos europeus.
Nas várias definições para racismo, a que melhor se relaciona com o tema desse trabalho, está em: o racismo constitui um sistema hierárquico complexo, um conjunto estruturado de práticas e discursos sociais e institucionais...
A sedimentação de conceitos, fundamentais para a formação de pré-conceitos, em um contexto de longa duração, se dá com a gradativa repetição de situações em que o homem e a mulher negra são representados sempre em condições de desvantagens com relação aos brancos. A subalternidade está presente na grande maioria das peças publicitárias e telenovelas brasileiras, onde com raras exceções, os afro-descendentes conseguem romper as barreiras de submissão que lhes são impostas através do velado racismo brasileiro (muitas vezes nem tão velado assim).
A idéia de super dotação física, sensualidade, inerentes aos africanos e afro-descendentes vem sempre acompanhada com a construção imagética de sua bestialidade e incapacidade mental. A construção desses esteriótipos tem por principio os discursos fundadores como os iniciados a partir da Vênus de Hotentote, que colocam todas as mulheres negras com os mesmos atributos físicos.
No filme A Negação do Brasil, a representação do negro e negra nas telenovelas mostradas, além de apresentar alguns exemplos clássicos, como os que demonstram a sensualidade e a beleza da mulata, apresentam e reafirmam mais casos de subalternidade e bestialidade. A estratégias discursivas, segundo Borges, veiculadas através dos meios de comunicação, podem contribuir para a superação desses estereótipos tão enraizados nas práticas dos produtores de peças publicitárias e de telenovelas.
Se faz necessário apresentar os afro-descendentes, que são 50% da população brasileira, de forma a valorizar a diferença e as contribuições dessa etnia, de forma a diminuir paulatinamente a rotulação feita pelos meios de comunicação, que ainda obedecem à significação racista, imposta pelos valores advindos do eurocentrismo. Porém, a mídia perpetua a repetição dos padrões “exigidos” para atingir a maioria do público.
Assim, os modelos e estilos de vida a serem seguidos são apresentados à população como possíveis de se atingir. O ideal de vida que jamais vai ser alcançado, mas que é escancarado como objetivo a ser atingido.
As novelas brasileiras, em especial as da rede globo, contribuem para a perpetuação da condição de subalternidade dos afro-descendentes brasileiros.  No documentário fica claro a influência eurocêntrica na construção da imagens cânones dos afro-brasileiros. São sempre representados por empregadas domésticas, jagunços, mulatas “gostosonas”, bons de samba e capoeira, bandidos, submissos, favelados, mães pretas, moleques e etc. Com essas representações, segundo Sodré, constrói-se as imagens desejadas e consequentemente a decisão sobre quem pode frequentar determinados lugares e possuir determinados objetos, e, segundo Borges, “instalam linhas divisórias que constituem o estatuto do Outro, o fora de padrão”. Ou ainda, as prisões de imagens, segundo Alice Walker.
A necessidade de desconstrução desse pernicioso sistema de representação é premente e passa obrigatoriamente pela revisão de alguns conceitos por parte dos meios de comunicação. Há algumas iniciativas nesse sentido, mas é publico o saber de que ainda estamos muito aquém do ideal. Iniciativas isoladas podem ser exemplificadas, mas ainda constituem um esforço solitário.
As telenovelas brasileiras, pela grande visibilidade que tem, poderiam dar uma contribuição maior nesse sentido. Mas percebe-se que ainda estamos longe de ver o afro-descendente ser representado de forma igualitária nas telenovelas. Em doses homeopáticas, os meios de comunicação atribuem ao negro e negra seu verdadeiro papel. Na grande maioria das vezes, a televisão brasileira e especificamente as telenovelas contribuem incisivamente para dicotomia entre a supremacia branca e a inferioridade dos povos afro-descendentes, numa invariável repetição da lógica eurocêntrica. Nesse contexto, ainda há a problemática do sentimento de não pertencimento que os papéis dos negros e negras nas telenovelas, provocam na grande população afro-descendente brasileira.

Entre a cruz e a constituição

Entre a cruz e a constituição

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Porque não sou cristão - Por Bertrand Russell


Como afirmou o vosso Presidente, o tema que irei versar esta noite é ― Porque não sou cristão[1]. Convém, de início, procurar estabelecer o que se entende pela palavra cristão. Ela é usada nos nossos dias num sentido vago por um grande número de pessoas. Alguns aplicam-na a todo aquele que procura levar uma vida virtuosa. Nesse sentido, suponho que se encontrariam cristãos em todas as seitas e em todas as crenças, razão por que penso que não constitua o melhor significado para essa palavra, pois implicaria que todas as pessoas que não são cristãs ― budistas, maometanas, confucionistas e outras ― não pudessem levar uma vida virtuosa.
Não entendo por cristão quem procura viver de modo convincente e de harmonia com a razão. Penso que é necessária uma certa dose de determinada crença antes de ter o direito de se intitular cristão. De qualquer modo, a palavra não tem o rico sentido que possuía no tempo de Santo Agostinho e de S. Tomás de Aquino. Nessas épocas, se alguém se confessava cristão sabia-se o que isso significava. Aceitava-se todo um conjunto de crenças estabelecidas com grande precisão e a todas as palavras dessas crenças se associava uma fé inabalável.

O que é um cristão?
Nos nossos dias não se passa o mesmo. É necessário ser-se um pouco mais vago no significado de cristão. Julgo, no entanto, que existem dois pontos necessários para todo aquele que se proclama como tal. O primeiro é de natureza dogmática ― ou seja, que se deve acreditar em Deus e na imortalidade. A não acreditar nesses dois princípios, penso que ninguém se poderá proclamar cristão. Depois, como o nome implica, deverá possuir-se a crença da existência de Cristo. Os maometanos, por exemplo, crêem igualmente em Deus e na imortalidade, e no entanto não se proclamam cristãos. Dever-se-á ter como base fundamental a crença de que Cristo, a não ser de essência divina, é pelo menos o melhor e o mais sábio dos homens. Se não possuís, no mínimo, esta crença na existência de Cristo, não creio que tenhais o direito de vos intitulardes cristãos.
Sem dúvida, existe um outro sentido que se pode encontrar no Whitaker's Almanack ou nos livros de geografia, onde se declara que a população do globo se divide em cristãos, maometanos, budistas, adoradores de fetiches, etc.; e nesse sentido todos nós seremos cristãos. Os tratados de geografia englobam-nos a todos, mas esse é um critério puramente geográfico que, suponho, não deve ser considerado. De onde concluo que, quando pretendo expor por que não sou cristão, devo ater-me a outras duas ordens de razões: primeira, porque não creio em Deus e na imortalidade; segunda, porque não penso que Cristo tenha sido o melhor e mais sábio dos homens, ainda que lhe reconheça um grau elevado de virtude moral.
Sem os frutuosos esforços dos cépticos do passado, não me seria possível dar uma definição tão elástica de cristão. Como já afirmei, antigamente esta palavra possuía um sentido mais rico. Incluía, por exemplo, a crença no Inferno. A crença num fogo infernal, eterno, foi um princípio essencial da fé cristã até uma época relativamente recente. No nosso país, como deveis saber, deixou de constituir um princípio essencial depois da decisão do Privy Council, que os Arcebispos de Canterbury e de York não reconheceram; mas como no nosso país a religião é determinada pela lei do Parlamento, o Privy Council pôde sobrepor-se à opinião dos Arcebispos. Assim, a crença no Inferno deixou de ser necessária para se ser cristão, razão por que não insistirei nela.

A existência de Deus
Abordar a questão da existência de Deus, eis uma grande e séria questão, e se me determinasse tratá-la de modo adequado, seria necessário reter-vos aqui até à chegada do reino de Deus. Por isso, espero que me desculpareis por a tratar de um modo um tanto sumário. Sabeis, naturalmente, que a Igreja Católica erigiu em dogma que a existência de Deus pode ser demonstrada pela via racional. É um dogma assaz curioso mas não deixa de o ser. Tornou-se necessário introduzi-lo porque em determinado momento os livre-pensadores adoptaram o hábito de declarar que existiam este e aquele argumentos racionais contra a existência de Deus e que a aceitação dessa existência era matéria de fé. Os argumentos e as razões foram expostos minuciosamente e a Igreja Católica entendeu que lhes devia pôr um ponto final. E adoptou mais esse princípio de que a existência de Deus pode ser demonstrada pela simples via racional, e ela própria estabeleceu o que considerava como argumentos dessa prova. São sem dúvida bastantes, mas contentar-me-ei em invocar alguns.

O argumento da causa primeira
argumento da causa primeira é talvez o mais simples e o de mais fácil compreensão. (Mantém que tudo o que existe no mundo tem uma causa, e que percorrendo a cadeia de causas se chegará fatalmente à causa primeira, a que se dá o nome de Deus). Este argumento, suponho, não pesa demasiado na nossa época, porque, entretanto, a noção de causa não é a mesma de outrora. Os filósofos e cientistas têm estudado esse conceito e ele não possui actualmente a força que se lhe atribuía; mas, no entanto, podereis verificar que o argumento da causa primeira é daqueles que não possui qualquer validade. Devo dizer-vos que, quando era jovem e debatia estes problemas muito seriamente comigo próprio, aceitei por largo tempo o argumento da causa primeira, até que um dia, pelos meus dezoito anos, lendo a Autobiografia de Stuart Mill, descobri esta frase: "Meu pai ensinou-me que a pergunta "Quem me criou?" não comporta qualquer resposta porque imediatamente ela levantaria outra interrogação: "Quem criou Deus?" Esta frase tão simples revelou-me, como ainda creio, a falácia do argumento da causa primeira. Se tudo deve ter uma causa também Deus a deve possuir; e se algo existe sem causa tanto pode ser o mundo como Deus ― razão da inutilidade desse argumento. Ocorre-me a história do indiano que afirmava estar o mundo assente num elefante e este sobre uma tartaruga; e quando se pergunta: "E a tartaruga?" o indiano responde: "E se mudássemos de assunto?" Na verdade o argumento não tem mais valor do que este.
Não há razão para que o mundo não tenha nascido sem causa; nem, além disso, e por outro lado, que não tenha existido sempre. A ideia de que as coisas devem ter um começo é uma opinião resultante da pobreza da nossa imaginação. Assim não me parece ser necessário ocupar mais tempo com o argumento da causa primeira.

O argumento da lei natural
A seguir, há o argumento muito conhecido da lei natural. Foi um argumento muito em voga ao longo do século XVIII, especialmente devido à influência de Isaac Newton e da sua cosmogonia. Observavam-se os planetas que giram à volta do Sol segundo a lei da gravitação, e pensava-se que Deus tinha dado ordem para se movimentarem nessa trajectória, razão por que a efectuavam. Essa era, naturalmente, uma explicação fácil e simples que evitava o trabalho de procurar uma explicação para a lei da gravitação.
Actualmente, explicamos a lei da gravitação de um modo um pouco mais complicado, de harmonia com o que Einstein nos ensinou. Não me proponho fazer uma conferência sobre a interpretação einsteiniana dessa lei porque nos ocuparia bastante tempo; em todo o caso, já se não aceita essa espécie de lei natural que fazia parte do sistema newtoniano, onde, por uma razão que se compreendia, a natureza se comportava de modo uniforme. Muitas coisas que considerávamos como leis naturais são actualmente demonstradas como constituindo puras convenções humanas. Sabeis que mesmo no mais longínquo ponto do espaço sideral uma jarda é igual a três pés. É, sem dúvida, um facto importante mas que dificilmente poderá ser classificado como lei da natureza. E quantas coisas mais, tidas como leis da natureza, são do mesmo género?
Por outro lado, até onde chega o nosso conhecimento real sobre os átomos, descobris que eles se encontram muito menos submetidos a leis do que se pensava, e que as leis estabelecidas são apenas médias estatísticas que lembram justamente aquelas que dependem do acaso. Existe, e todos nós a conhecemos, uma lei segundo a qual, no lançamento de dados, o doble de seis sai apenas uma vez sobre trinta e seis, sem que se conceba esse facto como prova de que essa combinação obedeça a qualquer projecto; ao contrário, se o doble de seis saísse sempre é que pensaríamos que se tratava de coisa determinada! A maior parte das leis, da natureza são desse género. São médias estatísticas como aquelas leis que dependem do acaso, o que transforma todo este assunto das leis naturais numa coisa menos extraordinária do que anteriormente se pensava.
Além desta verificação, demonstrativa do carácter epocal da ciência, susceptível de mudança de rumo, a própria ideia segundo a qual as leis da natureza implicam um legislador, resulta duma confusão entre a chamada lei natural e a lei humana. Esta, ordena que vos conduzais de certo modo, embora possais conformar-vos com isso ou adoptar não o fazer; mas as leis naturais são uma descrição do modo como a realidade efectivamente se comporta, e pelo facto delas serem uma simples descrição da sua acção real não torna necessário sustentar que deva existir alguém que imponha essa prescrição. A ser necessário isso, teríamos então que responder à seguinte interrogação: Qual a razão por que Deus prescreveu precisamente estas leis naturais e não outras? Se dizeis que Ele assim fez porque quis, sem qualquer razão, passareis então a admitir que existe alguma coisa não submetida a leis, rompendo-se, então, o vosso encadeamento de leis naturais. Mas se afirmais, como o fazem os teólogos ortodoxos, que em todas as leis feitas por Ele havia uma razão para impor estas e não outras ― razão que seria naturalmente a de criar o melhor dos mundos, ainda que isso nos pareça duvidoso ― concluiremos, então, que há uma causa para as leis impostas por Deus. E Deus teria sido Ele próprio submetido a uma lei, não havendo qualquer vantagem em o ter introduzido como intermediário. Ter-se-á estabelecido uma lei exterior e anterior às ordens divinas, pelo que Deus não serve os propósitos de primeiro legislador. Em resumo: o argumento de lei natural não é tão consistente como se pretendia. Estou a tentar seguir uma ordem cronológica na revisão dos argumentos a favor da existência de Deus, dado que eles têm mudado de harmonia com os tempos. Foram de início argumentos difíceis, intelectuais, comportando determinados sofismas. A medida que nos aproximamos da época actual, tornam-se intelectualmente menos respeitáveis e cada vez mais afectados por uma espécie de imprecisão moralizante.

O argumento do plano ou teleológico
O degrau seguinte desta exposição leva-nos ao argumento do plano. Conheceis esse argumento: tudo no mundo está disposto de modo a nele podermos viver, e se o mundo fosse diferente, ainda que ligeiramente, não seria possível essa existência. Tal é o argumento do plano ou teleológico. Ele assume por vezes uma forma bastante curiosa; por exemplo, sustenta-se que os coelhos têm a cauda branca para facilmente serem descobertos pelo caçador. Não sei o que os coelhos pensariam desta aplicação do argumento. Conheceis aquela reflexão de Voltaire de que o nariz foi visivelmente concebido de forma a poder segurar os óculos. Este género de paródia não estava longe do alvo, tanto quanto se podia pensar no séc. XVIII, porque depois de Darwin sabemos melhor porque os seres vivos se adaptam ao mundo que os cerca. Não foi o meio ambiente criado para se adaptar a eles, mas sim os seres que evoluíram de modo a ele se adaptarem ― este, o fundamento da adaptação. A prova do plano não tem aplicação neste caso.
Quando se examina de perto este argumento do plano, é surpreendente verificar-se que alguém possa acreditar que este mundo, com tudo aquilo que encerra, com os seus defeitos, tenha que ser o melhor que um ser omnipotente e omnisciente tenha podido criar ao longo de milhões de anos. Não o posso aceitar. Imaginai que sois omnipotentes e omniscientes e vos são dados milhões de anos para aperfeiçoar o mundo, ― não vos seria possível criar nada de melhor do que a Ku-Klux-Klan ou o Fascismo? Além disso, se aceitais as leis ordinárias da ciência, deveis supor que a vida do homem, e a vida em geral, desaparecerá em devido tempo em todo este planeta: é uma etapa do declínio do sistema solar. Numa determinada fase do declínio, chegar-se-á a um conjunto de condições de temperatura e outras, inadequadas ao protoplasma e haverá vida por pouco tempo em todo o sistema solar. Vê-se na Lua o exemplo do que acontecerá na Terra ― alguma coisa de morto, de frio, de desértico.[*]
Dir-se-á que esta opinião é deprimente e que as pessoas seriam incapazes de continuar a viver se dela participassem. Não acredito nisso; é uma pura tolice. Ninguém se preocupará verdadeiramente pelo que acontecerá daqui a milhões de anos. Mesmo que o afirmem, enganam-se a si próprias. As razões dos seus cuidados são mais imediatas, ou resultam simplesmente duma má digestão; na verdade, ninguém ficará seriamente preocupado ao pensar num acontecimento que se produzirá neste mundo daqui a milhões e milhões de anos. Por isso, ainda que seja lúgubre supor-se que a vida desaparecerá ― suponho que se possa dizer isso, ainda que por vezes, quando considero o que as pessoas fazem da sua vida, chegue a pensar que isso constitui uma consolação ― esse sentimento não é suficiente para tornar a vida miserável. Simplesmente, obriga a nossa atenção a voltar-se para outros assuntos.

O argumento moral a favor da divindade
Abordámos mais uma etapa daquilo a que poderia chamar o rebaixamento intelectual que os deístas mostraram nos seus argumentos e chegamos agora ao capítulo dos chamados argumentos intelectuais a favor da existência de Deus. Sabeis, naturalmente, que existem três argumentos intelectuais a favor da existência de Deus e que todos foram refutados por Kant na Crítica da Razão Pura; mas logo que os refutou inventou um novo, um argumento moral que acreditou ser inabalável. Agiu como muitos outros: no domínio da inteligência era um céptico, mas no campo da moral acreditou implicitamente em máximas que tinha bebido com o leite materno. O que ilustra uma particularidade a que os psicanalistas atribuem tanta importância: a influência exercida sobre nós pelas recordações da primeira infância é extraordinariamente mais forte do que as recordações mais recentes.
Kant, como disse, inventou um novo argumento moral a favor da existência de Deus que, sob formas diferentes foi extremamente usado ao longo do século XIX. Teve toda a espécie de formas. Uma delas consistia em afirmar que não haveria o mal ou o bem se Deus não existisse. De momento, não importa a questão de saber se há alguma diferença entre o bem e o mal, ou se ela não existe: este é um outro problema. O que me interessa agora é que, a existir essa diferença, sereis colocados perante uma nova questão: essa distinção será ou não devida a um decreto de Deus? No caso afirmativo não haverá, para Deus, qualquer distinção entre o bem e o mal e, nesse caso, não constituirá declaração sensata o afirmar-se que Deus é bom. Se dizeis como os teólogos que Deus é bom, torna-se necessário que o bem e o mal tenham uma significação independente dum decreto de Deus, porque as leis de Deus serão boas e não más, independentemente do facto de serem ditadas por Ele. A ser assim, declarais implicitamente que não é pela intervenção de Deus que existem o bem e omal, mas que as suas essências são logicamente anteriores a Deus. Podeis, sem dúvida, se o desejardes, afirmar que existe uma divindade superior que impôs ordens ao Deus que criou o mundo ou, seguindo o exemplo dos gnósticos[2] ― partido que muitas vezes tenho considerado como bastante plausível ― afirmar que o mundo, tal e qual o conhecemos, foi criado por um demónio num momento em que Deus estava distraído. Isto poderia ser discutido longamente mas não estou interessado em refutar tal ponto de vista.

O argumento da reparação da injustiça
Existe ainda uma outra forma muito curiosa do argumento moral, que é: a existência de Deus é necessária para introduzir a justiça neste mundo. Nesta parte do universo que conhecemos reina uma grande injustiça: quantas vezes sofre o justo, prospera o mau e mal se sabe qual destes dois casos é o mais perturbador; mas, se se pretende que a justiça reine no conjunto do universo, é necessário supor uma vida futura capaz de estabelecer o equilíbrio da existência cá na terra. Portanto, diz-se, é necessário que exista um Deus, um paraíso e um inferno para que reine a justiça. É um argumento muito curioso. Se o considero dum ponto de vista científico, direi: "Afinal de contas, apenas conheço este mundo. Nada sei do resto do universo, mas na medida em que me é permitido raciocinar à base das probabilidades, direi que este mundo constitui um belo exemplo e que, se a injustiça reina nele, é quase certo que a injustiça reinará igualmente nos outros". Suponhamos que recebeis um cabaz de laranjas e, ao abri-las, descobris que as de cima estão apodrecidas. Por certo que não direis: "Debaixo devem estar sãs para que o equilíbrio seja restabelecido", mas sim: "É provável que tudo esteja estragado". É exactamente assim que raciocinaria um cientista em face do universo. Diria: "Verificamos neste mundo uma quantidade de injustiças e essa é uma razão para se supor que a justiça o não governa; e, consequentemente, tanto quanto compreendo, isso constitui um argumento contra uma divindade e não a seu favor". Sem dúvida, sei que este género de argumentos intelectuais não convence realmente as pessoas. O que as persuade a acreditar em Deus não é um argumento intelectual mas, geralmente, acredita-se porque se criou o hábito de o fazer desde criança.
E penso que a razão que imediatamente se segue é o desejo de segurança, uma espécie de aspiração à existência de um irmão mais velho que olhe por nós. Isto desempenha um papel muito profundo e leva as pessoas a desejarem acreditar em Deus.

A personalidade de Cristo
Desejo agora dizer algumas palavras sobre um assunto que penso não ter sido tratado convenientemente pelos Racionalistas. É o problema de saber se Cristo foi o melhor e o mais sábio dos homens. Geralmente admite-se que todos devemos estar de acordo com isso. Pela minha parte não o admito, embora existam muitos aspectos sobre os quais estou de acordo com Cristo e talvez em maior número do que os praticantes cristãos. Penso que não poderei segui-lo em tudo mas irei mais longe do que a maior parte dos cristãos. Recordais que Ele disse: "Tendes ouvido dizer: olho por olho e dente por dente. Eu porém digo-vos que não resistais ao que vos fizer mal; mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra". [3] Este não é um preceito ou um princípio novo. Foi usado por Lao-Tsé[4] e Buda alguns cinco ou seis séculos antes de Cristo, embora não seja um princípio a que os cristãos se submetam verdadeiramente. Não duvido que o actual Primeiro Ministro[5], por exemplo, seja um cristão muito sincero, mas não aconselho nenhum dos presentes a dar-lhe uma bofetada. Estou certo que descobriria que ele apenas atribui a esse texto um significado simbólico.
Há uma outra máxima que tenho como excelente. Recordais que Cristo disse: "Não queirais julgar, para não serdes julgados"[6]. Não acredito que encontreis este princípio nos tribunais das nações cristãs. Cristo disse também: "Dá a quem te pede e não te esquives ao que te pede emprestado"[7]. É um bom princípio.
O nosso Presidente lembrou que não estamos aqui para falar de política, mas não posso deixar de observar a luta das últimas eleições gerais.
Há igualmente uma outra máxima de Cristo que me parece importante, mas que julgo não estar muito em voga entre os nossos amigos cristãos. Diz o seguinte: "Se queres ser perfeito, vende os teus bens, e dá-os aos pobres"[8]. Eis uma excelente máxima mas que não é muito praticada! Todas elas são, ao que penso, excelentes ― ainda que seja bem difícil viver de acordo com elas. Não pretendo segui-las, mas no fim de contas o caso é diferente para um cristão.

Imperfeições nos ensinamentos de Cristo
Depois de ter reconhecido a excelência dessas máximas, vejamos outros textos onde se não manifesta a extraordinária sabedoria e suprema bondade que os Evangelhos atribuem a Cristo, omissão feita ao problema da historicidade do personagem. Com efeito, é muito duvidoso que Cristo tenha existido e, se existiu, nada podemos afirmar da sua vida como certo, razão por que não estou interessado nessa difícil questão histórica. Reporto-me apenas ao Cristo tal qual aparece nos Evangelhos e aceito estes como nos são apresentados ― e lá descobriremos afirmações que não nos parecem de grande sabedoria.
Entre outras coisas, Cristo pensava que o seu segundo advento se efectuaria entre nuvens de glória e ainda durante a vida dos seus contemporâneos. Existem numerosos textos que o atestam. Diz ele, por exemplo: "Não acabareis de percorrer as cidades de Israel, sem que o Filho do homem tenha chegado"[9]. E adiante afirma: "Muitos dos que aqui estão não conhecerão a morte sem que vejam o Filho do homem voltar na majestade do seu reino"[10]. Há muitas outras passagens onde é bem evidente que acreditou num segundo advento ainda em vida daqueles que o escutavam. De resto essa era a crença dos seus primeiros discípulos e constituía a base de uma grande parte dos seus ensinamentos morais. Quando diz: "Não vos inquieteis com o dia de amanhã"[11], e outras palavras do mesmo género, é porque tinha para breve esse segundo advento e, portanto, decretava o desinteresse pelos negócios terrenos. Conheci um Padre que assustou as suas ovelhas ao afirmar que esse advento estaria eminente, mas sentiram-se mais confortadas quando o viram plantar árvores no seu jardim. Os primeiros cristãos, porque tomavam à letra este género de oráculos, abstiveram-se evidentemente de tais iniciativas porque Cristo os tinha persuadido de que era eminente essa segunda vinda.

O problema moral
Vamos versar agora os problemas morais. Quanto a mim há um sério defeito na moral de Cristo, que é a sua crença no inferno. Não posso admitir que uma pessoa profundamente humana possa acreditar num castigo eterno.
Ora Cristo, tal como o descrevem os Evangelhos, acreditava nesse castigo e descobrem-se muitas frases que testemunham um furor vingativo contra aqueles que não aceitavam a sua doutrina ― atitude que pode estar de harmonia com um pregador mas que prejudicará a reputação dum ser a quem se atribui uma perfeição extraordinária. Se comparardes Jesus a Sócrates, por exemplo, verificareis que o filósofo era suave e cortês para quem se recusava a escutá-lo. Ao que penso, é muito mais próprio dum sage adoptar essa linha de conduta do que deixar-se dominar pela indignação. Recordem-se as palavras de Sócrates no momento da sua morte e aquelas que correntemente dirigia aos que estavam em desacordo consigo.
Nos Evangelhos ouvireis Cristo exprimir-se deste modo: "Serpentes, raça de víboras, como podereis escapar ao castigo do inferno?"[12] Isto era dirigido às pessoas que não apreciavam as suas palavras. Infelizmente, são muitas as imprecações do mesmo estilo, no que se refere ao inferno, nesses textos sagrados. Especialmente, cito aquele que se aplica ao pecado cometido contra o Espírito Santo: "Todo aquele que fala contra o Espírito Santo, não terá perdão neste mundo ou no outro"[13]. Este texto tem provocado no mundo um número indizível de tormentos. Não aceito que um ser possuindo um grama de bondade natural fosse capaz de instaurar no mundo crenças e terrores deste género.
Cristo diz ainda: "O Filho do homem enviará os seus anjos que arrancarão do seu reino todos os escândalos e aqueles que cometerem o mal, lançando-os na fornalha de fogo, onde haverá choros e ranger de dentes"[14]. E obstina-se em falar de choros e ranger de dentes, versículo após versículo, parecendo evidente aos leitores que Cristo considerava tudo isso sem qualquer desgosto. Se tal não correspondesse à verdade, essas palavras não apareceriam tantas vezes. Por certo que estais recordados do episódio das ovelhas e das cabras. Aquando o segundo advento, Jesus separará as ovelhas das cabras e dirá a estas: "Afastai-vos de mim, malditas, e ide para o fogo eterno"[15]. E prossegue: "Se o teu pé é para ti uma oportunidade de pecado, corta-o; porque é melhor entrares na vida eterna coxo, do que, tendo os dois pés, seres lançado no fogo do inferno, o fogo que nunca será extinto; onde os vermes não morrem e o fogo jamais é extinto"[16].
As repetições não cessam. Devo dizer que considero toda esta doutrina, segundo a qual o fogo do inferno é a punição do pecado, como a doutrina da crueldade, doutrina que introduziu a crueldade no mundo e tem justificado séculos de torturas. O Cristo dos Evangelhos, tal como os seus Apóstolos o apresentam, deve ser considerado como parcialmente responsável por esses acontecimentos.
Entre outros casos de menor importância há o dos porcos de Gadarena. Não é das atitudes mais gentis introduzir demónios nestes animais e fazê-los precipitar no mar, do alto de uma colina [17]. Não era Jesus todo poderoso e não podia simplesmente afastar os demónios? Mas preferiu alojá-los nos porcos.
Há também a curiosa história da figueira que não tem deixado de me intrigar. Sabeis o que aconteceu com a figueira. "E, ao outro dia, como saíssem de Bethânia, teve fome; e vendo ao longe uma figueira coberta de folhas avançou para ver se encontrava algum fruto. Aproximou-se então da árvore mas encontrou apenas folhas porque não era ainda a estação dos figos. E Jesus disse então para ela: que jamais alguém coma do teu fruto... e Pedro disse para Jesus: Mestre, olhai! A figueira que haveis amaldiçoado secou"[18].
Esta é uma história muito curiosa, visto não ser a época própria dos figos e não ser possível responsabilizá-la. Penso que em matéria de sabedoria ou de virtude, Cristo não está tão alto como outras figuras históricas. Nesses aspectos colocarei acima dele Buda ou Sócrates.

O factor emocional
Como já disse, não acredito que o motivo que leva as pessoas a aceitar uma religião tenha alguma coisa a ver com o raciocínio. Aceitam uma religião por motivos emocionais. Afirma-se muitas vezes que é prejudicial atacar uma religião, porque ela torna os homens virtuosos. Confesso que não estou convencido disso. Conheceis, por certo, a paródia que Samuel Butler fez deste argumento no seu livro Erewhon Revisited[19]. Estais recordados de que um certo Higgs chegou a uma remota região onde passa algum tempo e depois se escapa num balão. Vinte anos depois, tendo aí regressado, ficou surpreendido ao deparar com um novo culto no qual ele próprio era adorado sob o nome de Filho do Sol. Recorde-se que, com efeito, ele subiu aos céus. Estava para breve a celebração da Festa da Ascensão, quando ouviu os prosélitos Hanky e Panky, altos dignitários da religião dos Filhos do Sol, confidenciar um ao outro que nunca tinham visto o chamado Higgs e que esperavam que jamais isso acontecesse. Cheio de indignação, aproximou-se e disse-lhes: "Vou esclarecer neste dia toda esta mistificação e dizer ao povo de Erewhon que eu, Higgs, sou apenas um homem como os outros e que, simplesmente, me servi dum balão para deixar o vosso país". Responderam-lhe: "Não faças isso, porque todos os princípios morais deste povo estão ligados a esse mito, e se souberem que não subiste ao céu, transformar-se-ão todos em malfeitores". Persuadido, abandonou o país silenciosamente.
Em face desse preceito, seremos todos pecadores se não observarmos os mandamentos da religião cristã. Parece-me que o povo que se sente seguro das suas crenças se torna muito mais perverso. Facto curioso: quanto mais fervorosa foi a religião numa determinada época e mais profundo o dogmatismo, tanto maior foi a crueldade e pior o estado do mundo. Nos séculos em que a fé foi mais viva e em que os homens aceitaram a religião cristã na sua integridade, tivemos a Inquisição e as torturas. Penso nos milhões de mulheres queimadas como sacrílegas e em todos os horrores de que a religião foi o pretexto.
Basta relembrar a história mundial para nos apercebermos que o progresso, em todos os domínios (humanização da guerra, brandura na escravatura, comportamento para com as pessoas de cor), foi constantemente contrariado pela oposição das Igrejas, quaisquer que sejam. Eu afirmo, pesando bem as minhas palavras, que a religião cristã, tal qual é estabelecida nas suas igrejas, foi e continua a ser a principal inimiga do progresso moral do mundo.

Como as Igrejas têm retardado o progresso
Pode ser que penseis que sou demasiado ousado quando faço essa afirmação. Julgo que não. Tomemos um exemplo. Não será agradável referi-lo mas a atitude das pessoas religiosas obriga-nos a isso. Suponhamos que, neste mundo em que hoje vivemos, uma adolescente sem experiência se casa, sem o saber, com um sifilítico. Neste caso, a Igreja proclama: "O casamento é um sacramento indissolúvel; obriga-vos a manter a união para toda a vida". E esta mulher nada pode fazer para impedir que dela nasçam crianças sifilíticas. Tal é o ponto de vista da Igreja Católica. Ninguém poderá sustentar, a menos que tenha o coração absolutamente fechado ao sofrimento dos outros, que seja conveniente e justo que um tal estado de coisas se deva perpetuar.
Isto não é mais do que um exemplo. Existem ainda muitos outros domínios onde a Igreja, pelo controlo que exerce sobre aquilo a que lhe apraz chamar moralidade, impõe gratuitamente sofrimentos inúteis a um grande número de seres humanos. E sem dúvida, sabemo-lo, manifesta-se como adversária de todo o progresso quando se trata de diminuir o sofrimento neste mundo. Sob o nome de moralidade, etiquetou uma série de regras de conduta que brilham pela sua estreiteza e que nada têm a ver com a felicidade do homem; e quando se diz que é necessário fazer isto ou aquilo em vista à felicidade da humanidade, ela responde que nada tem a ver com o assunto: "A finalidade da moral não é a felicidade das pessoas".

O temor, base da religião
A religião é fundamentada primeiramente e sobretudo no temor. Por um lado é o terror perante o desconhecido, por outro o desejo de sentir uma espécie de irmão mais velho que esteja ao nosso lado quando nos sentimos receosos ou em dificuldades. O temor é a base deste problema ― temor do misterioso, temor do malogro, temor da morte. E o temor engendra a crueldade, razão por que a vemos de mãos dadas com a religião. O temor está na base de uma e de outra. Neste mundo, começámos a compreender as coisas, a dominá-las um pouco com a ajuda da ciência ― que vai abrindo caminho pouco a pouco apesar da oposição da religião cristã, das Igrejas em geral e de todas as superstições. A ciência pode ajudar-nos a vencer esse covarde terror em que a humanidade tem vivido durante tantas gerações; a ciência pode ensinar-nos, e penso que o nosso próprio coração nos pode também ajudar, a não mais procurar apoios imaginários à nossa volta, a não mais forjar aliados nos céus, mas a concentrar todos os nossos esforços aqui na terra, a fim de fazer deste mundo um lugar onde se possa viver agradavelmente, ao contrário do que têm feito todas as Igrejas através dos séculos.

O que devemos fazer
Devemo-nos manter de pé com os nossos próprios meios e olhar francamente para o mundo ― ver os seus aspectos bons, seus aspectos maus, suas belezas e suas fealdades; olhar para o mundo tal qual ele é, sem pavor. Conquistar o mundo pela inteligência e não nos deixarmos subjugar como escravos do terror. Todo o conceito de Deus é tirado do velho despotismo oriental. É uma concepção absolutamente indigna de homens livres. Quando sei de pessoas que se curvam nas igrejas confessando-se miseráveis pecadoras, e tudo o mais, tenho isso como desprezível, incompatível com o respeito que devemos a nós próprios. Devemos, ao contrário, olhar o mundo francamente e no seu rosto. Devemos melhorar este mundo e, se ele não é tão bom quanto desejávamos, que ele seja melhor do que o construído no passado pelos outros. Um mundo à nossa medida exige saber, bondade e coragem; não exige uma intensa nostalgia do passado, nem o acorrentar da livre inteligência aos entraves impostos pelas fórmulas que os antigos ignorantes inventaram. O que uma perspectiva do futuro desligada do terror exige é uma visão clara das realidades. O que exige a esperança no futuro não é o refluxo constante a um passado morto, que, estamos certos, será em muito ultrapassado pelo futuro que a nossa inteligência é capaz de criar.

Tradução de Mário Alves e Gaspar Barbosa
 
[1] Esta conferência foi pronunciada em 6 de Março de 1927, na Câmara Municipal de Battersea, sob os auspícios da South London Branch of the National Secular Society.
[2] Movimento herético que se estendeu ao Cristianismo, logo no seu primeiro século. De Gnôsis (conhecimento), afirma a possibilidade de os seus discípulos conhecerem os ensinamentos secretos de Jesus (N. do T.).
[3] S. Mateus, V, 38 e 39. (N. do T.)
[4] Controverso primeiro chefe do movimento taoísta na China, séc. VI antes de Cristo. (N. do T.)
[5] Stanley Baldwin.
[6] S. Mateus, VII, 1. (N. do T.)
[7] Ibid., V, 21. (N. do T.)
[8] S. Mateus, XIX, 21. (N. do T.)
[9] Ibid., X, 23. (N. do T.)
[10] Ibid., XVI. 28. (N. do T.)
[11] S. Mateus, VI, 34. (N. do T.)
[12] S. Mateus, XXIII, 33. (N. do T.)
[13] Ibid., XII, 32. (N. do T.)
[14] Ibid., XIII, 41-42. (N. do T.)
[15] S. Mateus, XXV, 41. (N. do T.)
[16] S. Marcos, IX, 44 e 45. (N. do T.)
[17] Referência ao episódio narrado em S. Marcos. V, 1 a 20. (N. do T.)
[18] S. Marcos, X1, 12 a 21. (N. do T.)
[19Regresso a Erewhon. (N. do T.)
 
[*] Previsão confirmada quase quarenta anos depois com a 1.ª viagem à Lua. N. T. (2.ª edição).

Bertrand Russell, Porque não sou cristão, Brasília Editora, Porto, sd, pp. 11-32.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Abre o olho Pedro

Num dia normal de uma semana normal de um mês qualquer de um ano igualmente normal, ele saiu de casa.
Ao levantar-se, calçou suas pantufas de tigres e, ao passar pelo corredor da casa, viu seu reflexo no espelho. Não percebeu o quanto aquelas pantufas eram espalhafatosas, ridículas e nem um pouco simpáticas. Foi ao banheiro, levantou a tampa do vaso e urinou longamente, pois durante a noite ficara com preguiça de se levantar. Abriu o armário. Pegou sua escova de dentes, girou preguiçosamente a tampa do tubo de creme dental e espremeu com força. Ele gostava de fazer bastante espuma enquanto escovava os dentes. Ainda com a escova na mão, modelou uma espessa barba branca com a espuma abundante que saia dos cantos da boca. Fez caras e bocas diante do espelho. Não achou graça. Terminou o ritual higiênico no banheiro e voltou para o quarto.
Era um quarto pequeno, uma cama de solteiro com um colchão bastante surrado. Um lençol quase transparente. Na janela, um cobertor pendurado em pregos, simulando uma cortina. Um pequeno criado mudo, que ele mesmo havia feito, na cabeceira da cama, que servia apenas para acomodar o seu despertador, que era um daqueles antigos, com três pés e campainha acionada por um pequeno martelo e que ele tinha que dar corda todas as noites antes de ir dormir. Das três portas do seu pequeno guarda-roupa sem gavetas, ele utilizava apenas uma, a do meio. A porta do meio dava acesso às suas calças, camisas e sapatos.
Tinha uma muda de roupa exatamente igual para cada dia da semana. Sete calças, sete camisas, sete cuecas e sete pares de meias. Os sapatos eram sete pares também, mas não eram iguais, era um diferente do outro. Tudo isso porque ele nunca fazia escolhas. Quando era necessário se decidir entre uma coisa e outra, ele ficava sempre muito confuso. Esse problema acabou quando optou por roupas iguais. Os sapatos diferentes eram para dar um toque de contraste. Um par de sapato diferente para cada dia da semana, definido através de rigorosos critérios onde foram relacionados, de alguma forma, as cores dos calçados aos dias da semana.
Pegou as roupas e os sapatos que eram usados na quarta-feira. Vestiu sem pressa. Não tomou café, nem comeu nada. Saiu apressado com a chave do carro na mão. No portão, lembrou-se que não tinha carro. Não tinha mais. Seu carro havia desaparecido há muitos anos e ele guardava a chave na esperança de que o carro um dia voltasse.
Com os passos apressados sobre a rua de paralelepípedos, na mão esquerda o seu guarda-chuva preto, de quem não se separava, e na cabeça um amontoado de pensamentos vazios e inúteis, seguiu para o trabalho. No caminho um bom dia aqui e outro acolá. Sempre reclamando, consigo mesmo, das condições daquela rua, que estavam acabando com os seus sapatos. Mas fazia isso em voz baixa, pois não tinha o costume de reclamar de nada, pra ninguém.
Sua rotina era totalmente previsível, assim como suas roupas. Mas naquela quarta-feira o dia estava diferente e logo ele percebeu a mudança.
O seu guarda-chuva nunca havia sido aberto. Nunca, jamais, durante todos os anos em que morava ali, havia chovido. De repente começou a cair grandes gotas de chuva. Aqui, ali, mais adiante. Ele com o guarda-chuva na mão e observando surpreso o toque-toque das gotas no chão. A chuva então veio pesada e o guarda-chuva finalmente teve sua estreia. E que estreia! Não ventava nem relampeava, mas a chuva era intensa e logo se formaram caudalosas enxurradas. Seus sapatos se molharam numa poça. As barras da calça também, mas ele continuou surpreso com a chuva.
Dia esquisito!- pensou olhando admirado para os sapatos molhados.
Atravessou o rio rebelde em que se transformara a rua, e do outro lado, por onde nunca passava, foi recebido por um estranho, que se abrigava do temporal debaixo da marquise de uma livraria.
- Vem pra cá, cabe mais um aqui! – disse o homem.
Será que é comigo!? – pensou ele, já que nunca havia visto tal figura. O homem entendeu e disse em seguida:
- É com você mesmo! Precisa escolher, se decidir, ou encara o desconhecido ou fica aí, com o seu guarda-chuva, o que vai ser?
Ele ficou parado na calçada, pensando sobre aquilo. Pra ele toda situação em que era preciso escolher era muito difícil. Tinha medo das consequências. Se preocupava com os desdobramentos possíveis. Naquele caso, se ele se abrigasse junto com o estranho debaixo da marquise da livraria, estaria mudando seu destino. Sua rotina certinha e previsível se transformaria num emaranhado de situações que fugiriam do seu controle. Pra começar, ele chegaria atrasado ao trabalho e esse fato desencadearia uma série de outras situações totalmente imprevisíveis. Ele poderia ser despedido, levar uma bronca do chefe, assinar o temido livro de advertências, ter um desconto no salário, encarar a censura dos colegas, virar motivo de piada e mais um punhado de consequências até piores. E se ficasse? O que aconteceria? Poderia fazer amizade com aquele homem, escolher um livro da vitrine da livraria, comprá-lo quando a livraria abrisse, voltar pra casa e ler o livro, aprender alguma coisa nova com o livro e com o desconhecido, ouvir sua história, contar a dele, pegar um resfriado, não ir ao trabalho, voltar pra casa e dormir o resto do dia. Eram apenas possibilidades.
Pensou todas estas coisas num átimo de segundo, quando um carro passou numa poça e ele molhou-se da cabeça aos pés. Essa tinha sido a consequência de ficar parado no meio da calçada pensando e tentando decidir o que fazer. E todo molhado como estava, não dava pra ir pro trabalho. Decidiu-se afinal. A primeira decisão em muitos anos. Pulou pra perto do homem, que se espremeu entre as colunas da entrada da livraria. Fechou o guarda-chuva e sentou-se. Sem nenhuma palavra.
- O senhor passa todo o dia por aqui. Sempre do outro lado da rua.
- Sim, sempre.
- E por que atravessou a rua hoje?
- Atravessei? É mesmo, atravessei!!
- Foi a chuva que o fez vir para esse lado, não foi?
- Não sei, realmente não sei.
- Meu nome é Gibraltar, muito prazer!!
Ele, por um momento, ficou confuso. Quem era ele? Quem sou eu? – pensou. Tinha o mesmo nome do pai. Ou era um filho seu que havia recebido o seu nome? Quem era ele? Lembrou-se do seu pai. Lembrou-se das lembranças que havia esquecido, que havia escondido de si mesmo nas gavetas do criado mudo, que nunca abria. Viu a chuva, a bica que caia do telhado e ouviu a linguagem codificada que as gotas de chuva faziam ao bater nos vidros da janela. Chovia muito em suas lembranças. Seu pai estava ajoelhado, com as mãos para o alto. Gritava palavras incompreensíveis. Ele pedia o fim da chuva, o fim das nuvens, raios e trovões. Pedia a presença do sol. Viu, enfim, o pai se apagando como uma vela ao sopro de uma criança. Viu a lápide no fundo do quintal. Lembrou-se de quem e por que?
- Ei, ei, acorda!
- Ah!! Me desculpe! Sou o pai ou sou o filho dele, não sei ao certo, mas pode me chamar de Pedro.
- Então Pedro? Onde você vai ou ia?
- Bem, eu ia ao trabalho.
- Por que ia? Não vai mais?
- Não, não vou não! Nunca mais.
- Isso é bom. Finalmente você se decidiu.
- Não vou voltar pra casa também.
- Isso é melhor ainda, faremos companhia um pro outro.
- Vou ficar por aqui mesmo. Minha vida inicia-se agora, debaixo dessa marquise, conversando com o senhor.
- E o que te levou a essa escolha?
- Não importa. Talvez a chuva, quem sabe, ou o carro, a água, o senhor, sei lá, tanto faz. O fato é que me decidi a ficar por aqui. Estou livre agora. E faço da minha liberdade o que quiser.
- Parabéns, afinal você é mais um que se liberta da prisão do mundo, da rotina, da chatice de ser igual.
Ficaram várias horas ali conversando e a chuva não parava, não parou e nunca mais pararia. O sol jamais seria visto novamente por aquelas redondezas. Resolveram, então, sair na chuva mesmo. Pedro e Gibraltar. Estranhos um para o outro. O primeiro acabava de se libertar, o segundo buscava libertar o mundo.
Subiram a rua de paralelepípedo numa conversa animada sobre qualquer coisa que viesse a cabeça. Gibraltar usava um pesado casaco preto, com grandes botões brancos, na cabeça uma boina, a la Che Guevara e nos pés nada, estava descalço. Enquanto Pedro, com a roupa que vestira em casa naquela manhã, havia esquecido voluntariamente o guarda-chuva na porta da livraria, não precisava mais dele.
Aquele destino o fascinava, não tinha medo de decidir mais nada e não entendia como aquilo havia acontecido. Gibraltar não era mágico ou mago e nem mesmo um deus, mas de alguma forma o ajudou a sair do buraco escuro e úmido onde se encontrava.
Chegaram ao centro da cidade. Não havia carros nas ruas. As lojas estavam todas abertas, mas não havia ninguém lá dentro. Nem funcionários e muito menos clientes. Onde estarão todos? – perguntaram-se. Caminharam pelas ruas do centro, entraram nas lojas, mercados, padarias, bancos e na prefeitura. Não havia ninguém.
Estranhamente eles não se surpreenderam com o sumiço das pessoas. Calmamente rumaram para a saída da cidade e lá, rapidamente, alcançaram a multidão que parecia fugir de algo, mas não estavam. Não havia desespero, pressa ou tristeza. No olhar das pessoas havia apenas um alivio inexplicável.
Era exatamente o que Pedro sentia. E ele se separou de Gibraltar e misturou-se àquela multidão como mais um liberto. A chuva continuava, mais vigorosa do que nunca. Ninguém se incomodava com ela. Crianças, velhos, mães, pais, todos ali, caminhando sem saber pra onde, como encantados por uma música inaudível. Não havia mais escolhas a fazer, nem satisfações a dar.
Pedro foi sacudido fortemente por uma senhora que caminhava ao seu lado. Ela gritava aos seus ouvidos, mas ele não entendia. Fechou os olhos e ouvidos, e quando abriu, ouviu sua mãe lhe perguntando: Por que Pedro? Ele era seu pai!!!

Sinal

Caído, como se tivesse sido jogado, como se fosse um simples boneco. Esparramado no chão. Mas não fui arremessado por ninguém. Do canto de minha boca escorria um sangue amargo, que ainda conseguia tentar engolir. Não sentia minhas pernas e nem os braços, mas meus ouvidos me diziam o que não queria ouvir.
Olhos curiosos me olhavam e julgavam, alguns me condenavam. Era culpado pela minha morte, ou quase morte. Outros advogavam em meu favor, fervorosamente, atribuindo toda a culpa ao motorista do ônibus que me atropelara:
- Ele estava correndo demais!
- Parecia estar bêbado!
- Coitado do moço, se quebrou todo!
Essas opiniões eu podia ouvir claramente. Meu atropelamento era o centro das atenções naquela manhã cinzenta de segunda-feira. Eu queria permanecer vivo mais alguns momentos na esperança dela aparecer. Eu esperaria eternamente. Mas ela não fazia parte daquela pequena multidão que me observava morrer. Ela não viera se despedir de mim.
Eu não a culpo. Acho que eu também não teria coragem de vê-la morrendo. Talvez ela nem tenha visto o acidente, ou se viu, não percebeu que o ator principal do espetáculo era eu. Há também a possibilidade dela ter ficado feliz com o meu destino. Ela, ao ver o acidente, pode ter pensado, com toda a justiça do mundo, que morrer era pouco pra um homem como eu. São muitas as possibilidades e poderia gastar o pouco tempo que tenho tentando identificar uma como provável. O fato é que ela não estava lá.
Eu mereci todo e qualquer pensamento dela, tendo visto ou não o meu acidente. Não mereci qualquer tipo de perdão, se é que existem diferentes tipos de perdões.
Hoje ao sair de casa só tinha um destino. Era presenciar minha própria morte, mas não sabia disso, obviamente. Achava que ficaria a manhã inteira sentado no banco da pequena praça, em frente ao trabalho dela. Esperaria pacientemente que ela saísse pra almoçar. Durante a longa espera pensaria numa forma convincente de pedir perdão. Ensaiaria cada frase, cada palavra, cada silaba, que por acaso não fosse sincera. A espera também serviria pra eu refletir em tudo o que havia feito. Mesmo achando que esse “tudo” não era tão grave assim. Tendo certeza absoluta que ela havia exagerado ao dizer todas aquelas ofensas quando saiu de casa.
Esse era meu plano pra hoje. Mas como nem tudo é como a gente planeja, lá estava, naquele encontro marcado, involuntariamente, com a morte.
Ainda devia ter algum tempo, e isso era bom, já que ainda tinha algumas considerações a fazer. Não conseguia, por mais que me esforçasse, me arrepender do que fiz. Fiz por que quis e talvez fizesse outra vez se houvesse outra oportunidade. Não havia como se arrepender. Não havia como voltar atrás. Eu nem queria.
Ela não compreendeu. Não entendeu minha alma. Talvez tenha ocorrido o contrário. Quem sabe, não é mesmo?
Agora, nessa fração de segundo de vida que ainda me resta, consigo tempo pra pensar nisso. Pesar minhas atitudes e perceber que minhas certezas sempre foram absolutas e por isso, jamais consegui enxergar as verdades dela. Seus desejos e vontades sempre foram suplantadas por uma argumentação fundamentada no meu gigantesco ego.
Nesse momento vejo e lembro de todas as ocasiões em que ela, passiva e pacificamente, aceitou minhas decisões. Não eram simples opiniões sobre sua roupa, filmes a assistir, sabor das pizzas, sobre o jantar, sobre o almoço, sobre nossas parcas amizades, e sim decretos que não davam a mínima chance de recurso a ela.
Sim, eu fui assim. Eu a massacrei sob a sola do sapato como se fosse uma barata. Eu joguei fora tudo de bom que ela sentia por mim. Fui mesmo um desgraçado!
Era só meu aquele fim. Como poderia pedir perdão com as palavras todas da boca pra fora?
Se tivesse conseguido atravessar a rua. Se tivesse falado com ela. Ela teria voltado pra mim. Podia ver o brilho naqueles olhos, lindos! Aquele brilho que significava um perdão irrestrito. Sem perguntas, sem por quês, sem lembranças, sem vingança. Nos beijaríamos e de mãos dadas iríamos almoçar. E nesse ponto, recomeçaria a relação anormal de opressão que havia entre nós. Tudo igual antes.
Os médicos chegaram, com o alarme habitual em ocasiões de emergência. Não vi e nem ouvi, mas imaginei a ambulância do resgate abrindo caminho naquele transito infernal com luzes ligadas e com o barulho ensurdecedor da sirene. Me sentia um sujeito importante. Tudo aquilo era pra mim. Toda aquela atenção dedicada ao meu alquebrado corpo me fez sentir menos culpado pelos meus crimes. Me fez pensar que, apesar de merecer o castigo, ainda tinha algum valor.
Afastaram os curiosos. Não me lembro se foram os médicos ou os policiais que fizeram isso! Bem, não importava. O que importava era que os olhares sobre o que restava de mim se reduziram a três. Um dos médicos segurava um balão de oxigênio e me olhava com um desdém que me incomodava. Sentia que aquele médico não tinha paixão pelo seu trabalho. Olhava pra mim e eu me sentia o resto do mundo. O pior dos animais ainda seria melhor do que eu. Desviei o olhar pro outro médico. Este, veio, trôpego, carregando uma maca. Tinha a expressão preocupada que todos os profissionais deveriam carregar no rosto. Talvez pensasse na minha morte e estivesse com medo. Talvez fosse seu primeiro atendimento e aquilo o estivesse assustando. Vai saber? São apenas possibilidades.
Por último notei naquele que me atendeu diretamente. Foi impossível não notar, já que ele estava bem pertinho de mim. Face a face comigo. Falava coisas que eu não entendia. Eu me vi nos seus olhos. Vi um brilho naquele olhar. O mesmo brilho que havia no olhar dela. Aquele olhar me pedia pra não fechar os olhos, pra que eu me mantivesse acordado, lúcido. Eu estava lúcido. Nunca fui tão lúcido quanto naquele momento.
Tudo ficou confuso de repente. Enxerguei naquele olhar, pela última vez, a vida que perdia e pude sentir o aconchego da morte. Não fiquei triste, nem decepcionado. Um acidente me fez ver tudo aquilo que fui pra ela. O brilho no olhar daquele médico me fez, humilde e pateticamente, pedir perdão.

Quando o despertador tocou, ela já estava de pé. No banheiro, em frente ao espelho, aos soluços, chorava desesperada. A noite havia sido a pior de todas. Seus olhos, com olheiras enormes, denunciavam um sono que não viera. Escovou os dentes, arrumou os cabelos, fez uma leve maquiagem, vestiu-se com a roupa de trabalho, calçou os sapatos, de salto é claro, pegou sua bolsa e saiu. No ponto de ônibus, enquanto esperava, teve tempo de enviar uma mensagem pra mim.

Já é meio dia e está quase na hora dela sair pro almoço e eu continuo sentado neste banco de praça. Leio, indeciso, mais uma vez, a mensagem que ela enviou esta manhã:“Não almoçaremos juntos hoje”. Não sei se atravesso a rua agora ou espero o sinal fechar.