segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Inventário

(Menção Honrosa no Concurso de Contos, Poesia e Fotografia - Servir com Arte, da Escola de Governo do Estado do Paraná)

Abriu uma gaveta, procurou incansável uma caneta ou lápis, revirou todo o quarto até que encontrou. Seus olhos brilhavam de contentamento, de posse, agora, do lápis e do caderno. Sentou-se na cama, pegou-o, ergueu-o na altura dos olhos. Anote! - disse ele com a voz estremecida de quem já não tem controle sobre seus atos e pensamentos. Abriu-o na primeira página e começou as suas anotações:

Olho, neste momento, para a parede do meu quarto. Existem inúmeros objetos pendurados. Os pregos martelados ao léu despedaçaram pedaços dela. Penduraram então retratos, alguns, de pessoas que, várias, eu não conheço. Olho agora pra um desses quadros e o que vejo não me atrai nenhum pouco. Um velho de cabelos grisalhos olhando pra mim e sorrindo. Vejo saindo de sua boca apenas uma palavra. Ouço o desenho dessa palavra e sei que nunca me deixará.

Existem mais quadros, todos eles com molduras extravagantes, umas de madeira, outras de metal, uma de madeira com cantoneiras de metal dourado e outro prateado. O espelho também está pendurado. O espelho é misterioso, pois mostra tudo aquilo que agora preciso anotar. Tudo o que quero está dentro do espelho e não consigo alcançar. Preciso descrever e ser exato. Não gosto do espelho. Sinto inveja dele. Ele tem tudo e eu não tenho nada.

À minha direita, outra parede do quarto. Há uma grande janela. E mais pregos batidos enfeitando o que ainda resta do reboco. A janela é enorme, mas eu nunca abro. Prefiro deixar que se abra sozinha. Eu exercito meus pensamentos pensando o que há através dela. Não tem cortina minha janela e não dá pra lugar nenhum. Lá fora sei que tudo é vago. Minha janela é um espelho que não quer me refletir. Fica fechada sempre. Seus vidros estão todos embaçados e eu acho melhor assim. A poeira amarelada já toma conta de todos os espaços vazios. Não posso ver através dos vidros. Vejo.

Mas o que vejo não é nítido e assim me interesso pelas coisas que não posso distinguir claramente. Não há paisagem através deles. Não há perspectivas que me levem a me interessar pela apreciação pura e simples do que não faz parte de mim. Prefiro apenas imaginar e anotar.

Na parede oposta à da janela está meu guarda-roupa. Duas portas e quatro gavetas apenas. Pintado de branco. Embaçado. Encardido. Puxadores de metal nas gavetas e portas, daqueles parecidos com alças de caixão. Do lado esquerdo do guarda-roupa fica a porta, que dá pro corredor, que vai parar na sala e por sua vez encontrar a porta que dá pro mundo. Prefiro meu quarto. A porta fica fechada. Sempre.

Do lado direito do guarda roupa fica a parede, com mais alguns pregos maltratando com os mesmos objetivos o reboco. Em alguns deles estão pendurados roupas, sacola, bolsas, etc. As roupas penduradas ali estão todas sujas, pois já não as lavo há muito tempo. Nas sacolas, posso ver daqui, estão guardadas seguramente de mim mesmo, objetos que já não uso mais.

Não me lembro exatamente quais são, mas sei que os coloquei lá. Lâmina de barbear, sapatos, pentes, escova de dente, meias, relógios, anéis, óculos... tudo ali, na segurança das sacolas penduradas nos pregos pregados em minha maltratada parede.

Voltemos ao guarda roupa.

Há atrás daquelas tão horrendas portas, que abri muito, durante muito tempo de minha vida, um vazio que finalmente consegui vencer. Vazio que esconde o excesso de coisas que me eram importantes. Não há mais nada. Antes de começar escrever, abri pela última vez aquelas famigeradas portas. Nas gavetas também não mais nada. Há muito tempo que ali não tem mais nada. Nem meias, nem ceroulas, nem nada. Olhando daqui, posso ver que existe algum objeto debaixo dele, mas não é nada com que deva me preocupar nesse momento, somente quero anotar.

Na última parede, onde me encontro agora sentado na minha cama, fica a cama. Minha eterna e única companheira de uma vida que achei que nunca chegaria ao fim. Minha cama foi e é muito firme. Feita de madeira nobre, vermelha. Muitos colchões passaram por ela sem que ao menos afrouxasse os encaixes. Aqui eu durmo.

Dormi muitas noites que não merecem ao menos serem lembradas. Passei também inúmeras noites acordado olhando apenas pro meu quarto, e ele, acordado como eu, sempre me compreendia. Entendia minhas razões. Nesta parede também há pregos. Mas aqui não há nada pendurado. Usei todos os outros pregos das outras paredes. Eles foram mais que suficientes pra eu fazer a pendurança dos trecos e coisas que já foram meus. Agora não são mais.

Pertencem a ele e elas.

Pregos e paredes donos de mim. Espelho que guarda a vida que um dia existiu nesse quarto. Quadros e retratos que mostram as verdades que não são as minhas. Guarda-roupa me dizendo neste momento, com suas portas e gavetas que eu vivi inutilmente. Mas não acredito nele. Sei que minha vida se esgota agora, mas sei também que tudo o que fiz teve um sentido, teve sentido. Anoto e isso me traz conforto. Minha vida na ponta deste lápis. Resto de esforço pra deixar algo além de um quarto. Despontado como este lápis, me entrego finalmente ao que esperei e busquei minha vida inteira. Minha cama e meu colchão, meu caixão e meu quarto, meu túmulo.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

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