Num dia normal de uma semana normal de um mês qualquer de um ano
igualmente normal, ele saiu de casa.
Ao levantar-se, calçou suas pantufas de tigres e, ao passar pelo
corredor da casa, viu seu reflexo no espelho. Não percebeu o quanto
aquelas pantufas eram espalhafatosas, ridículas e nem um pouco
simpáticas. Foi ao banheiro, levantou a tampa do vaso e urinou
longamente, pois durante a noite ficara com preguiça de se levantar.
Abriu o armário. Pegou sua escova de dentes, girou preguiçosamente
a tampa do tubo de creme dental e espremeu com força. Ele gostava de
fazer bastante espuma enquanto escovava os dentes. Ainda com a escova
na mão, modelou uma espessa barba branca com a espuma abundante que
saia dos cantos da boca. Fez caras e bocas diante do espelho. Não
achou graça. Terminou o ritual higiênico no banheiro e voltou para
o quarto.
Era um quarto pequeno, uma cama de solteiro com um colchão bastante
surrado. Um lençol quase transparente. Na janela, um cobertor
pendurado em pregos, simulando uma cortina. Um pequeno criado mudo,
que ele mesmo havia feito, na cabeceira da cama, que servia apenas
para acomodar o seu despertador, que era um daqueles antigos, com
três pés e campainha acionada por um pequeno martelo e que ele
tinha que dar corda todas as noites antes de ir dormir. Das três
portas do seu pequeno guarda-roupa sem gavetas, ele utilizava apenas
uma, a do meio. A porta do meio dava acesso às suas calças, camisas
e sapatos.
Tinha uma muda de roupa exatamente igual para cada dia da semana.
Sete calças, sete camisas, sete cuecas e sete pares de meias. Os
sapatos eram sete pares também, mas não eram iguais, era um
diferente do outro. Tudo isso porque ele nunca fazia escolhas. Quando
era necessário se decidir entre uma coisa e outra, ele ficava sempre
muito confuso. Esse problema acabou quando optou por roupas iguais.
Os sapatos diferentes eram para dar um toque de contraste. Um par de
sapato diferente para cada dia da semana, definido através de
rigorosos critérios onde foram relacionados, de alguma forma, as
cores dos calçados aos dias da semana.
Pegou as roupas e os sapatos que eram usados na quarta-feira. Vestiu
sem pressa. Não tomou café, nem comeu nada. Saiu apressado com a
chave do carro na mão. No portão, lembrou-se que não tinha carro.
Não tinha mais. Seu carro havia desaparecido há muitos anos e ele
guardava a chave na esperança de que o carro um dia voltasse.
Com os passos apressados sobre a rua de paralelepípedos, na mão
esquerda o seu guarda-chuva preto, de quem não se separava, e na
cabeça um amontoado de pensamentos vazios e inúteis, seguiu para o
trabalho. No caminho um bom dia aqui e outro acolá. Sempre
reclamando, consigo mesmo, das condições daquela rua, que estavam
acabando com os seus sapatos. Mas fazia isso em voz baixa, pois não
tinha o costume de reclamar de nada, pra ninguém.
Sua rotina era totalmente previsível, assim como suas roupas. Mas
naquela quarta-feira o dia estava diferente e logo ele percebeu a
mudança.
O seu guarda-chuva nunca havia sido aberto. Nunca, jamais, durante
todos os anos em que morava ali, havia chovido. De repente começou a
cair grandes gotas de chuva. Aqui, ali, mais adiante. Ele com o
guarda-chuva na mão e observando surpreso o toque-toque das gotas no
chão. A chuva então veio pesada e o guarda-chuva finalmente teve
sua estreia. E que estreia! Não ventava nem relampeava, mas a chuva
era intensa e logo se formaram caudalosas enxurradas. Seus sapatos se
molharam numa poça. As barras da calça também, mas ele continuou
surpreso com a chuva.
Dia esquisito!- pensou olhando admirado para os sapatos molhados.
Atravessou o rio rebelde em que se transformara a rua, e do outro
lado, por onde nunca passava, foi recebido por um estranho, que se
abrigava do temporal debaixo da marquise de uma livraria.
- Vem pra cá, cabe mais um aqui! – disse o homem.
Será que é comigo!? – pensou ele, já que nunca havia visto tal
figura. O homem entendeu e disse em seguida:
- É com você mesmo! Precisa escolher, se decidir, ou encara o
desconhecido ou fica aí, com o seu guarda-chuva, o que vai ser?
Ele ficou parado na calçada, pensando sobre aquilo. Pra ele toda
situação em que era preciso escolher era muito difícil. Tinha medo
das consequências. Se preocupava com os desdobramentos possíveis.
Naquele caso, se ele se abrigasse junto com o estranho debaixo da
marquise da livraria, estaria mudando seu destino. Sua rotina
certinha e previsível se transformaria num emaranhado de situações
que fugiriam do seu controle. Pra começar, ele chegaria atrasado ao
trabalho e esse fato desencadearia uma série de outras situações
totalmente imprevisíveis. Ele poderia ser despedido, levar uma
bronca do chefe, assinar o temido livro de advertências, ter um
desconto no salário, encarar a censura dos colegas, virar motivo de
piada e mais um punhado de consequências até piores. E se ficasse?
O que aconteceria? Poderia fazer amizade com aquele homem, escolher
um livro da vitrine da livraria, comprá-lo quando a livraria
abrisse, voltar pra casa e ler o livro, aprender alguma coisa nova
com o livro e com o desconhecido, ouvir sua história, contar a dele,
pegar um resfriado, não ir ao trabalho, voltar pra casa e dormir o
resto do dia. Eram apenas possibilidades.
Pensou todas estas coisas num átimo de segundo, quando um carro
passou numa poça e ele molhou-se da cabeça aos pés. Essa tinha
sido a consequência de ficar parado no meio da calçada pensando e
tentando decidir o que fazer. E todo molhado como estava, não dava
pra ir pro trabalho. Decidiu-se afinal. A primeira decisão em muitos
anos. Pulou pra perto do homem, que se espremeu entre as colunas da
entrada da livraria. Fechou o guarda-chuva e sentou-se. Sem nenhuma
palavra.
- O senhor passa todo o dia por aqui. Sempre do outro lado da rua.
- Sim, sempre.
- E por que atravessou a rua hoje?
- Atravessei? É mesmo, atravessei!!
- Foi a chuva que o fez vir para esse lado, não foi?
- Não sei, realmente não sei.
- Meu nome é Gibraltar, muito prazer!!
Ele, por um momento, ficou confuso. Quem era ele? Quem sou eu? –
pensou. Tinha o mesmo nome do pai. Ou era um filho seu que havia
recebido o seu nome? Quem era ele? Lembrou-se do seu pai. Lembrou-se
das lembranças que havia esquecido, que havia escondido de si mesmo
nas gavetas do criado mudo, que nunca abria. Viu a chuva, a bica que
caia do telhado e ouviu a linguagem codificada que as gotas de chuva
faziam ao bater nos vidros da janela. Chovia muito em suas
lembranças. Seu pai estava ajoelhado, com as mãos para o alto.
Gritava palavras incompreensíveis. Ele pedia o fim da chuva, o fim
das nuvens, raios e trovões. Pedia a presença do sol. Viu, enfim, o
pai se apagando como uma vela ao sopro de uma criança. Viu a lápide
no fundo do quintal. Lembrou-se de quem e por que?
- Ei, ei, acorda!
- Ah!! Me desculpe! Sou o pai ou sou o filho dele, não sei ao certo,
mas pode me chamar de Pedro.
- Então Pedro? Onde você vai ou ia?
- Bem, eu ia ao trabalho.
- Por que ia? Não vai mais?
- Não, não vou não! Nunca mais.
- Isso é bom. Finalmente você se decidiu.
- Não vou voltar pra casa também.
- Isso é melhor ainda, faremos companhia um pro outro.
- Vou ficar por aqui mesmo. Minha vida inicia-se agora, debaixo dessa
marquise, conversando com o senhor.
- E o que te levou a essa escolha?
- Não importa. Talvez a chuva, quem sabe, ou o carro, a água, o
senhor, sei lá, tanto faz. O fato é que me decidi a ficar por aqui.
Estou livre agora. E faço da minha liberdade o que quiser.
- Parabéns, afinal você é mais um que se liberta da prisão do
mundo, da rotina, da chatice de ser igual.
Ficaram várias horas ali conversando e a chuva não parava, não
parou e nunca mais pararia. O sol jamais seria visto novamente por
aquelas redondezas. Resolveram, então, sair na chuva mesmo. Pedro e
Gibraltar. Estranhos um para o outro. O primeiro acabava de se
libertar, o segundo buscava libertar o mundo.
Subiram a rua de paralelepípedo numa conversa animada sobre qualquer
coisa que viesse a cabeça. Gibraltar usava um pesado casaco preto,
com grandes botões brancos, na cabeça uma boina, a la Che Guevara e
nos pés nada, estava descalço. Enquanto Pedro, com a roupa que
vestira em casa naquela manhã, havia esquecido voluntariamente o
guarda-chuva na porta da livraria, não precisava mais dele.
Aquele destino o fascinava, não tinha medo de decidir mais nada e
não entendia como aquilo havia acontecido. Gibraltar não era mágico
ou mago e nem mesmo um deus, mas de alguma forma o ajudou a sair do
buraco escuro e úmido onde se encontrava.
Chegaram ao centro da cidade. Não havia carros nas ruas. As lojas
estavam todas abertas, mas não havia ninguém lá dentro. Nem
funcionários e muito menos clientes. Onde estarão todos? –
perguntaram-se. Caminharam pelas ruas do centro, entraram nas lojas,
mercados, padarias, bancos e na prefeitura. Não havia ninguém.
Estranhamente eles não se surpreenderam com o sumiço das pessoas.
Calmamente rumaram para a saída da cidade e lá, rapidamente,
alcançaram a multidão que parecia fugir de algo, mas não estavam.
Não havia desespero, pressa ou tristeza. No olhar das pessoas havia
apenas um alivio inexplicável.
Era exatamente o que Pedro sentia. E ele se separou de Gibraltar e
misturou-se àquela multidão como mais um liberto. A chuva
continuava, mais vigorosa do que nunca. Ninguém se incomodava com
ela. Crianças, velhos, mães, pais, todos ali, caminhando sem saber
pra onde, como encantados por uma música inaudível. Não havia mais
escolhas a fazer, nem satisfações a dar.
Pedro foi sacudido fortemente por uma senhora que caminhava ao seu
lado. Ela gritava aos seus ouvidos, mas ele não entendia. Fechou os
olhos e ouvidos, e quando abriu, ouviu sua mãe lhe perguntando: Por
que Pedro? Ele era seu pai!!!