terça-feira, 29 de abril de 2008

Pensando em que?

Já fazia mais de duas horas que aquele rapaz permanecia sentado. Um banquinho bem abrigado à sombra de uma enorme árvore, daquelas que tem folhas bem grandes e uma deliciosa sombra, e que, não por acaso, não sei o nome. Estava ele. Sozinho. Por um momento achei que estivesse, mas logo percebi a presença incontestável daquela enorme criatura que fornecia sua sobra aquele rapaz. Ele parecia triste, talvez porque a sombra o envolvesse numa espécie de nevoeiro invisível, que parecia impedi-lo de levantar a cabeça. Não ria. Não falava. Às vezes parecia dormir.

De repente alguma coisa mudou. Continuava de cabeça baixa, mas o nevoeiro imaginário, que provavelmente é fruto de minha própria imaginação, se dissipou. Vi caminhando lentamente em sua direção um pequeno pássaro. Não sei qual era. Mas isso também não importa agora. O pássaro parecia estudar cada passo que dava, buscando não assustar aquele pobre rapaz. Bicava aqui e ali. Dava pequenas corridas de um lado para o outro. O rapaz nem percebia. O pássaro percebeu que não corria perigo e avançou. Voou e pousou no assento do bando. Nem assim conseguiu chamar a atenção. Bicou sua mão, mas não foi capaz de tirar aquele rapaz do transe onde se encontrava.

Vi uma luz intensa. Branca. Quase me cegando. Tinha sido um sonho. Olhei ao meu redor e percebi que continuava no mesmo lugar. Naquele lugar horrível. Um quarto todo branco. Com cortinas brancas. Móveis e roupas de cama, tudo branco. Senti um desespero. Lembrava-me do sonho. Parecia sentir a densidade daquela sombra. Abria a janela e fiquei por algum tempo tentando me localizar diante daquilo tudo que estava acontecendo. As pessoas lá embaixo também estava todas vestidas de branco. Todas meio atrapalhadas, andando de um lado para o outro. Havia muitas e enormes árvores. Estavam floridas e suas flores contrastavam com o clima de tristeza que se abatia sobre aquelas pessoas. Fiquei olhando por algum tempo aquela paisagem e no entanto foi como se estivesse num outro mundo e enxergasse aquelas pessoas como anormais. Elas eram anormais. Deu vontade de ir até onde eles estavam. Falar-lhes do meu sonho. Perguntar porque tanta tristeza diante daquele espetáculo que a natureza proporcionava?
Desci até aquele imenso jardim e por incrível que pareça não havia escadas no prédio onde eu estava, mas de alguma maneira tive que desce por algum lugar. Olhei pra cima e tentei localizar a janela onde eu estava há poucos instantes e não consegui encontrar. Não havia janelas. Não havia prédio. Olhei ao meu redor e aquilo foi muito estranho, pois estava bem no meio de uma enorme multidão. Todos de branco. A mesma paisagem que lá de cima, do quarto, parecia alegre e festiva, agora se revelava desoladora e, pra ser sincero, fazia uma grande confusão em minha cabeça, meus sentimentos já não estavam claros. Tentei identificar alguma pessoa conhecida no meio daquele turbilhão de rostos. Em vão. Aquelas pessoas não estavam ali. Elas olhavam pra mim, mas era como se enxergassem através do meu corpo. Me senti nu. Despiam-me com seus olhares invasivos, pareciam estar descobrindo todos os meus segredos. Coisas que eu tinha medo de trazer à toda e agora espontaneamente eu revelava àquelas pessoas. Falava sem me pronunciar. E eles ficavam satisfeitos em conhecer todas as minhas verdades.

Comecei a chorar. Quis desaparecer daquele lugar. A sensação que eu tinha era que eles iriam entram em minha cabeça. Comecei a correr desordenadamente. Descontroladamente em qualquer direção. Não importava. Queria me livrar daqueles olhares indiscretos. Tudo muito rápido e instantâneo. Novamente uma luz branca me cegava os olhos. Sentia os meus sentidos à flor da pele. A mais suave brisa parecia uma tempestade. O calor era insuportável e ao mesmo tempo sentia frio. Uma tremenda confusão, que fez com que minha cabeça parecesse enorme. Achei que fosse explodir. Aquela luz diante dos meus olhos. Somente luz. Não havia mais nada. Nem quarto. Nem cama. Nem gente. Nem eu mesmo me encontrava naquele lugar e o mais estranho é que eu também não me sentia.

Aí está você. Deve ter sofrido bastante. Seu rosto tem uma terrível expressão de sofrimento. Seus últimos momentos devem ter sido muito difíceis. Tem uma aliança na mão esquerda. Tem esposa, então provavelmente deve ter deixado um filho ou quem sabe dois. Qual será o nome desse rapaz? Não importa, talvez seja João, Pedro ou Antonio. Com certeza sua vida foi bem complicada. Sua aliança esta toda riscada e suas mãos são calejadas. Devia trabalhar em serviço pesado, ou na roça, ou quem sabe na construção civil. Pra ir trabalhar tinha que se levantar às cinco horas da manhã. Saia sempre sem tomar café, pois não dava tempo, se tomasse, perdia o ônibus e se perdesse o ônibus também perdia o emprego. E isso não podia acontecer, pois sua família dependia dele. Seu filho ou seus filhos dependiam dele. Provavelmente você foi um bom pai e um bom marido. Um pingente com o nome de uma mulher, provavelmente sua mulher. Você também foi muito romântico, afinal qual homem carrega junto consigo uma coisa dessas hoje em dia?

Não gostava muito de se barbear nem de cortar o cabelo.

Fiquei admirado. Era um sujeito muito ansioso, pois quase não existem unhas em seus dedos. Talvez fosse pela extrema responsabilidade com sua vida. Medo de não conseguir honrar seus compromissos. Medo de perder o emprego. Um enorme medo de ficar doente, e assim não poder trabalhar e ser despedido. Medo, talvez, de envelhecer ou morrer antes de deixar o devido amparo à família.

Pagava aluguel. Uma casa horrível, provavelmente num lugar igualmente horroroso, com condições precárias. Seus filhos nem tinham onde brincar. Na rua não podiam, pois tinha um esgoto enorme a céu aberto. Dentro de casa, nem pensar, pois eram somente dois cômodos e o banheiro, se é que aquilo podia se chamar de banheiro. No seu bolso esquerdo há um recibo de aluguel. Muito caro. Pra você tudo devia ser caro.

Mas agora morreu e não precisa mais se preocupar com nada. Apenas fechar os olhos e descansar. Sua mulher com certeza vai arrumar outro marido, pois ainda é bastante jovem. Vai sofrer e vai chorar bastante. Talvez demore pra esquecê-lo, mas vai conseguir. Porque provavelmente, você que sempre foi tão preocupado e atencioso, deve ter recomendado a ela, que se acaso você morresse, pra que ela não ficasse sozinha. Tinha pedido a ela que arranjasse alguém pra ajudar a cuidar dos meninos. Até isso você deve ter pensado.

Agora aí deitado, inerte. Pensando em que?

Seu pai precisou partir filho. Foi morar no céu, junto com as estrela! Respondia aquela pobre mulher a seu filhos sempre que este a indagava sobre seu pai. Não adiantava tentar remendar a história. O menino, mesmo acreditando em sua mãe e nas histórias que ela contava, sabia que seu pai havia morrido. Não voltaria a vê-lo novamente. A viúva, coitada, toda vez que o menino fazia esse tipo de pergunta, se desmanchava em pranto e ficava inconsolável. Seu marido era um bom homem. Um lutador. Mas do que adiantara todo o seu esforço. Se perguntava a pobre viúva. Morrera jovem, sem ver seus filhos criados. Não conseguiu construir a casa com que sonhara morar desde quando casaram-se. Agora não realizaria o sonho de acompanhar seus filhos na escola, levá-los, tomar a lição, pra, segundo ele – Ser gente na vida, ganhar dinheiro e ter alguma coisa!!! Acabaram, todos os sonhos se foram.

Novamente do alto daquele prédio. Numa janela, dessa vez era muito pequena e estava tudo muito escuro ao meu redor. Somente aquele quadradinho iluminado à minha frente. Não sabia se estava sentado ou deitado, mas parecia estar flutuando e aquela sensação me fez perceber que o sonho ou a alucinação havia acabado e tudo agora se tornava mais claro pra mim. Eu estava acordado. Tinha que estar. Aquilo não podia ser falso.

Através daquela pequena janela comecei ver coisas, no inicio estranhas, mas logo fui me acostumando. Eu vi um rapaz sentado sob a sombra de uma árvore. Uma mulher chorando desesperadamente. Uma casa, minha casa, todo enegrecida. Me aproximei mais e vi também uma criança, porém não chorava. Nos seus olhos eu vi um sentimento horroroso que não devia existir no coração das crianças. Ela sentia saudades e eu vi naquela criança que aquele sentimento se transformaria em algo que ela não seria capaz de dominar. Seria transformada numa criatura amarga e infeliz.

Não consegui entender o porque. Não conhecia a mulher que chorava, muito menos os meninos de olhos revoltados e rancorosos. Mas o homem sentado à sombra me assustou. Olhei bem pra ele. Cheguei bem perto. Olhei dentro dos seus olhos e vi. Me vi. Dentro seus olhos me encontrei. Percebi tudo afinal.

Tudo se apagou momentaneamente. Voltei ao jardim onde já havia estado antes. Agora com mais clareza, soube que todas aquelas pessoas estavam na mesma situação que eu. E elas, individualmente, também não conseguiam ver em mim alguma consciência. Pra elas eu também era mais um doente.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Felicidade

Manelão tinha um galo índio que cantava exatamente às quatro e meia da manhã, todo o santo dia. Ele ficava empoleirado em cima da cumeeira da casa a noite toda, quem via o galo lá durante a noite dizia que parecia uma estátua, pois ele nem se mexia. O galo mal dava sinal de enfraquecer a voz e Manelão já tinha um substituto. Mantinha um time de galos de prontidão para substituição imediata. Dizia ele que “coisa essencial em um sítio era um galo”. Gostava de se gabar de ter no seu terreiro os melhores galos cantadores da redondeza. Só não gostava de gente que colocavam os bichinhos pra brigar. Seus galos eram de serventia apenas pra cantar. Pois pra Manelão horário era coisa séria e ele era extremamente rígido com seus compromissos. Às cinco horas, pontualmente, ele já tinha preparado o café, tomado, colocado um pouco numa garrafa e já estava em pé bem em frente do grande pé de figueira, onde, todo dia ele realizava o mesmo ritual.

Subia no galho mais alto daquela imensa árvore e lá de cima podia olhar toda a sua propriedade, que se estendia desde a barroca do rio Cruzante até o pé do morro da Caçarola, lá longe onde sua vista não alcançava. Rezava, agradecia a deus por tudo que tinha. Agradecia pela sua família, pelos seus bichos, que sempre gozavam de boa saúde. Após isso ele descia. Com muito cuidado, pois já não era tão jovem como na época em que começara com aquele costume.

“Bom dia Janete!!” – berrava Manelão entusiasmado. Janete era o nome da sua única vaca. Única não porque ele não tivesse condições de ter mais vacas, mas é que ele era bastante criterioso na aquisição dos seus bichos. Ele acreditava que se não fosse pra ele ter outras vacas iguais a Janete, ele não queria. – A Janete deveria ser uma raça, fico só imaginando o pasto cheinho de Janetes!!! – suspirava Manelão. Tirava o leite, que era suficiente pra sua família. Dava pro queijo, qualhada, bolo, doce. Quando voltava pra casa o dia já tinha amanhecido. Muitas vezes ele, ao atravessar um pequeno bosque que ficava entre o curral e sua casa, parava e ficava hipnotizado com todos os presentes que Deus havia lhe dado. Os pássaros cantavam as mais belas melodias dentro do seu quintal. As árvores tinham uma beleza sem igual. Ficava alguns segundos nesse estado de transe para logo acordar, ainda tinha que tratar das galinhas e dos porcos.

Aquele dia, como todos os outros, fora um longo dia de trabalho. Porém a noite não seria nada tranqüila. Ele tinha acabado de fazer sua ultima tarefa do dia e estava louco pra chegar em casa, tomar banho, comer e dormir, mas quando colocou os pés dentro de casa, foi recebido aos trancos e barrancos pela sua esposa. Ela estava furiosa. – O que aconteceu mulher? – perguntou Manelão pacientemente. – Não se faça de inocente! – gritou sua mulher descontroladamente.

Já se passaram vários anos de casamento com este homem que eu mal conhecia. Pra ser mais exata, eu ainda não conheço. Manelão!! Vê lá se isso é modo de uma pessoa se chamar. Fui obrigada a me casar com ele. Gostava de outro, mas ele não era ninguém. Não tinha onde cair morto, coitado. Já o tal do Manelão tinha. Quer dizer, também era um pobre diabo, mas segundo meu pai, ele tinha uma bela propriedade, que se estendia desde a barroca do rio Cruzante até o pé do morro da Caçarola. Baseando-se nisso, meu pai não pensou duas vezes em arranjar o casamento entre nós. Foi um tragédia, pra mim é claro, pois o safado do Manelão estava em êxtase.

Uma semana de casamento, no entanto nós ainda não tínhamos nos tocado. Eu era muito arredia e rebelde. Mas ele não se importava. – Uma hora você vai ter que ceder. – dizia ele calmamente. Ele não sabia o quanto aquela paciência me irritava. Tinha vontade de matá-lo bem aos pouquinhos e este sentimento se estendia também ao meu pai, pois ele tinha sido o culpado de tudo. Ah.. Miguelito, se fosse com você tudo podia ter sido diferente.

Detestei o lugar. Meu ódio por aquele homem e o sentimento de frustração me cegava a ponto de eu achar horrível aquelas lindas paisagens que juntamente com a casa, parecia um quadro. Odiei a casa, que era muito bem organizada. Limpa. Bem feita. Num bom lugar e com uma ótima vista. Não gostei justamente por isso. Esperava o contrario. Queria que fosse tudo horrível. Que a casa onde moraríamos fosse um pardieiro, sujo como um chiqueiro. Mas não era. Não tive justificativa pra reclamar. Minha última esperança era de que o famigerado Manelão fosse um péssimo marido, bebesse, me espancasse, assim meu pai me aceitaria de volta. Mas o desgraçado nem pra isso prestara. Era gentil e a cada sua gentileza sua eu respondia com algum objeto na parede. Ele não reagia. – Não tem problema amor, foi só um acidente! – dizia ele tranquilamente. Sua paciência era o combustível para minha impaciência.

Seu Manelão entrou, arrastou uma cadeira, sentou-se num canto da cozinha e ficou olhando pra sua esposa pacificamente. Ela estava num estado de nervos que até ele, com toda sua paciência, estranhou. Tremia-se toda. Gesticulava. Puxava os cabelos. Seu beiço tremia. Manelão se levantou, olhou bem pra ela e disse: Vou tomar um banho e dar um pulinho na cidade, quem sabe quando eu voltar você está mais calma... Ela nem olhou pra ele, continuou naquela posição, como se estivesse presa em um mundo que não fosse seu.

Manelão vestiu sua melhor roupa, calçou os sapatos. Foi até a varanda pra se despedir e teve que correr, se não ela lhe acertava um vaso de flor na cabeça. E lá se foi Manelão, rumo à cidade. Nada tirava daquele homem o otimismo e a alegria. Enquanto caminhava prestava atenção aos menores barulhos. O vento balançando o capim na beira da estrada. O canto dos pássaros noturnos. Olhava as estrelas e a lua. Tudo era belo, a noite era como se fosse, pra ele, a princesa do reino onde o dia era o rei. Ele de vez em quando olhava pra trás pra ver se a luz da varanda já tinha se apagado. Na última vez que olhou ainda estava acesa e aquele ponto era o último que dava pra ver a varanda da sua casa. – Daqui a pouco ela se cansa e vai dormir, amanhã vai ser outro dia! – dizia ele, convicto de que no outro dia tudo voltaria ao normal. E o normal pra ele sempre foi agüentar a fúria dela pacifica e passivamente. Nunca reagira. De maneira nenhuma, a não ser inventar alguma inesperada visita a cidade.

Caminhou durante uns quarentas minutos, no máximo, e conseguiu uma carona. Um caminhão boiadeiro que passava, parou e ele foi sentado em cima da carroceria, com os pés balançando sobre as cabeças dos animais. Até aquilo era motivo de felicidade pra ele. Olhava aqueles animais e sentia pena, mas ao mesmo tempo sabia que era preciso sacrificá-los. Chegando à cidade, o caminhão parou e ele desceu. Agradeceu ao motorista, propôs pagamento pela carona, que o motorista rejeito sumariamente. – Deus lhe pague então amigo!!! falou a agradecido. Atravessou a rua, andou alguns metros e entrou num bar. Nunca tinha entrado ali, só queria comprar cigarros. Mas acabou ficando. Se enturmou com o pessoal. Jogou “esnuque”, baralho e até dominó. Já estava tarde quando resolveu tomar a saideira pra ir embora. Sentou-se num banquinho perto do balcão e pediu a bebida. O dono do bar veio atendê-lo rapidamente. – Rapaz, mas que crise ein!!! – falou todo comunicativo o dono do botequim querendo puxar conversa. Seu Manelão assentiu com a cabeça e não deixou ele levar a garrafa mais. Encheu o como novamente e virou. Seria preciso bastante combustível para o longo caminho de volta ao sítio.

Era um lugar esquisito. Alguma coisa como Bar do Bileque. Notei o nome porque estava escrito em vermelho com letras garrafais na fachada do prédio. Apesar disso era um legitimo botequim de fim de rua. Uma mesa de bilhar, algumas mesas de jogos no fundo. Um balcão enorme, com um monte daqueles banquinhos de pernas compridas encostados perto. Todos os banquinhos, ou quase todos, tinham dono. Figuras de todos os tipos, ali se encontravam os brasileiros. Depois desse rápido reconhecimento do território, encontrei um daqueles banquinhos desocupado e tratei logo de me sentar. Queria comer alguma coisa logo, pois dali a pouco estaria partindo. Ao sentar, fui atendido rapidamente por um simpático senhor. Era o tal do Bileque. Todos o chamavam assim, logo...

O senhor Bileque trouxe o meu pedido e continuou por perto onde estava numa animada discussão com um sujeito sentado ao meu lado. Me interesse pela conversa deles e fiquei prestando atenção.

Falavam de felicidade. Seu Bileque dizia que era feliz, apesar de faltar-lhe algumas coisas. Já o sujeito do meu lado, que por sinal já estava bem alto, fazia uma única reclamação, deus havia lhe dado tudo e até mais do que ele merecia materialmente, mas o grande amor da sua vida não o amava. Continuaram a conversa algum tempo ainda até que seu Bileque olhou pra mim e de supetão perguntou: E você, o que acha? Quase engasguei, pois apesar de estar prestando atenção na conversa, não imaginava essa situação, fiquei sem reação. Era como se eles soubessem o que eu estava pensando e que eu tinha também algumas reclamações a fazer ou sugestões a dar.

O sujeito ao lado, pela primeira vez olhou pra mim. Percebi um homem angustiado. Dentro de seus olhos havia uma felicidade realmente incompleta. Era como se faltasse um pedaço daquele homem. Ele ficou alguns segundos olhando pra mim, como se me estudasse, como se tentasse adivinhar qual seria a minha resposta para sua pergunta, como se eu fosse a solução pra aquele dilema em que vivia sua alma e a extrema contradição da sua vida

O que você faz da vida? Perguntou finalmente. Eu, de passagem por aquele lugar, com a certeza de que nunca mais iria ver tais pessoas, num “insight”, respondi:

- Sou vendedor de idéias.
- Vendedor de idéias, como assim?
- Não vai adiantar explicar agora, por que não tenho tempo.
- Tudo bem, então me vende uma, nem que for uma bem pequena.
- Agora quem não entendeu foi eu senhor. O que o senhor quer exatamente?
- Eu quero ser feliz.
- Ah!!! Isso é muito fácil.

Aquele senhor então olhou pra mim com uma cara de espanto e quis saber se eu era feliz. Respondi que sim e ele fez uma cara que eu sabia que era de inveja e ao mesmo tempo de orgulho. – Me ensina? – pediu, quase num sussurro. Então eu disse que ele já era feliz e que não precisava procurar em outro lugar, pois a felicidade estava dentro dele há muito tempo. Ele então perguntou se sua mulher um dia poderia amá-lo. Após saber toda a história, experimentei uma opinião.

- Você podia deixá-la ir. Ela não é sua felicidade. Sua felicidade está em você mesmo. Nas coisas que você dá valor. Na beleza que você vê ao seu redor. E isso ninguém vai tirar de você. Sua esposa, provavelmente também é infeliz e muito provavelmente também não é culpa sua. Parece-me que vocês buscam felicidades diferentes e nunca encontrarão um no outro. Você já é feliz, deixe-a ser também.
Não faço a mínima idéia do por que daquela resposta. Se formou em minha cabeça e fui falando espontaneamente, como se fosse algo que eu realmente acreditasse e que fizesse parte do mel rol de conceitos, ou ainda, talvez eu estivesse repetindo algumas das muitas opiniões sobre a vida expressas nos muitos livros em que já lera. Enfim, o fato foi que aquele homem havia se impressionado com minha fala. Mas antes dele falar alguma coisa, levantei e sai apressado, havia chegado minha hora.

Era tudo que eu queria que ele fizesse. Não agüentava mais. Todos aqueles anos convivendo com Manelão e eu não cedi um milímetro sequer. Era a mesma pessoa do dia do nosso casamento. Frustrada, magoada e ressentida com a vida. Eu fui enganada pelo destino. Mas finalmente tinha me decidido. Abandonei tudo, pois nada daquilo tinha valor pra mim. – Manelão!! – não estava nenhum pouco preocupada com ele. Tinha certeza que, apesar de tudo indicar o contrario, ele sempre esteve olhando exclusivamente para o seu próprio umbigo. Ele teve como evitar tantos anos de sofrimento, tanto meu como dele, mas ele preferiu arriscar nossas vidas nessa tentativa de conquistar o amor à força. Não conseguiu. Teve o que mereceu durante todos esses anos. Não queria que ele ficasse com nada, nenhuma lembrança minha. Desejei nunca ter existido pra ele.

Fui até o quarto, arrumei algumas roupas numa pequena sacola e bem tranquilamente sai. Fiquei por alguns minutos olhando a noite. O céu, as estrelas, a lua. Olhei cada detalhe daquele lugar que tinha passado quase toda minha vida. Apesar do escuro, era como se estivesse dia, pois enxergava nitidamente tudo. O curral e os animais que dormiam naquela hora da noite. Janete ruminando bem tranqüila, encostada na cerca olhando pra mim. O galo empoleirado em cima da casa que tanto me irritara e agora não conseguia imaginar-me sem seu canto. Olhei mais uma vez pra aquilo tudo e fiz o que tinha de fazer.
De longe o clarão daquelas chamas iluminava o caminho. Não olhei pra trás. Já não tinha mais nenhuma ligação com aquele lugar e nada me fazia desviar do meu destino. Agora eu seria a senhora da minha própria vida. Quando vi ele se aproximar, tive a certeza de que tinha feito a coisa certa. Me encontrava, naquele momento, com a felicidade que um dia me fora roubada.

Tudo era negro. Canudos de fumo subiam dos restos do que foram um dia o sitio de Manelão. Ele olhava perplexo. Já havia amanhecido e ele ainda não conseguia esboçar nenhuma reação. Não chorou. Sua casa destruída. Todos os seus animais mortos. Seu galo e a vaca Janete também. Nem quando encontrou seus restos mudou sua expressão resignada. Não restou definitivamente nada de tudo aquilo que um dia tinha sido seu mundo. O mundo de seu pai e de seu avô. Não chorou. Nenhuma única lágrima. Pensou na marida. Provavelmente estava morta também. Não sentiu tristeza, sentiu como se tivesse a libertado
Olhou ao longe e viu o pé de figueira também queimado. Tudo destruído. O pequeno bosque perto também estava queimado. Aproximou-se do que restou daquela grandiosa árvore, subiu até onde deu. Agradeceu. Tinha finalmente encontrado a felicidade. Era finalmente livre pra satisfazer a si próprio.

Sozinho, sem jamais olhar pra trás, agora ele era feliz.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Calçada

Era hora do almoço quando Ariano decidiu que naquele dia não iria almoçar. Não havia tempo pra pensar em futilidades inúteis referentes à gastronomia e à manutenção de suas necessidades básicas, como a reposição das calorias gastas até aquele momento com seu entediante, mas recompensador trabalho, que na verdade consistia em contar e conferir, nunca repetindo o que era contado e conferido. Todo dia era uma surpresa.

Não havia tempo a perder. Passou rapidamente pelo vestiário, trocou de roupa como se tivesse que pagar uma multa exageradamente alta, caso se demorasse nesse ritual, quase fúnebre, em que as pessoas muitas vezes ficam horas e horas experimentando peças e peças de roupas. Fez isso num átimo de momento.

Já na calçada, como um psicótico, olhou para um lado e outro da rua, na direção de qualquer carro, como se quisesse compreender todo o seu funcionamento somente pela pura e simples apreciação do modelo, da cor, dos tamanhos e modelos das rodas, os tipos de pneus. Parecia prestar atenção aos mínimos ruídos dos motores, perceptíveis talvez apenas aos cães.

Gostava de amarelo, achava essa cor a mais bela entre todas as outras e sempre que tentava nunca conseguia encontrar uma razão prática e racional pra esse gosto, tão estranho quanto gostar de assistir jogos de futebol, aos domingos, às quatro horas da tarde, totalmente nu no sofá em frente ao televisor.

Seguiu, instintivamente, na mesma direção em que seguia o primeiro carro amarelo que por ali passou, indo no sentido do Dama do Alvoroço, que era um clube, que ficava na zona leste da cidade. Um clube, porém, não se podia dizer que era um clube social, pois estava mais pra clube anti-social. Na verdade era mesmo um bom e velho clube daqueles em que somente os homens são bem vindos, mais parecendo o Clube do Bolinha.

Andou durante uns quarenta minutos, pela calçada que estava bastante tumultuada. Muitas pessoas indo e vindo, parecendo que todas estavam com os mesmos objetivos, ou seja, atrapalhá-lo. Mas tendo percebido esse estratagema, rapidamente, nosso neurótico e esquizofrênico herói tomou uma difícil decisão, que provavelmente mudaria completamente o rumo de nossa história. Mas não muito.

Dentro do táxi, Ariano olhou e reparou em tudo. Viu que as borrachas de vedação das portas não estavam no lugar, a manivela de subir ou descer o vidro não funcionava corretamente, o assento do carro não era confortável o suficiente, o cinto de segurança não estava dentro das especificações do conselho nacional de trânsito, o motorista não estava decentemente trajado, aliás, trajava uma calça jeans bastante surrada, uma camiseta de um branco um tanto encardido, usava uma boina preta na cabeça à Che e uma barba enorme, que fazia com que aparentasse ter pelo menos uns sessenta anos. Ariano não aguentou e perguntou sua idade. Tinha apenas vinte e dois.

Assim que conseguiu inventariar todo o interior do táxi, Ariano lembrou-se que na pressa de se livrar daquela multidão da calçada, se esquecera de reparar qual era a cor do carro e isso o incomodou bastante. Foi então que abriu a janela e coloco aquela sua enorme cabeça espantada para fora do carro para verificar pessoalmente a cor, sem ter que apelar humildemente para a boa vontade do motorista com sua possível pergunta, que pro motorista podia ser inútil e sem sentido, além do mais não queria atrapalhá-lo na sua tão compenetrada condução do veículo.

O carro era vermelho e ele nem titubeou em pedir para que o motorista parasse o carro imediatamente, pois ele precisava descer bem ali. Mal sabia o motorista que ele não podia ficar um minuto sequer dentro de um carro que não fosse amarelo. O motorista ainda tentou argumentar que ali era muito perigoso pra ele descer, mas não teve jeito.

Na calçada novamente pode respirar aliviado, havia se livrado da maldição de ter que andar em um carro como aquele. Havia andado apenas algumas quadras, mas o movimento na calçada já era bem menor e isso foi constatado com muito contentamento pelo nosso amigo. Havia poucas pessoas andando naquele ponto. Pôs-se a caminhar na direção do Clube do Alvoroço, sem pressa, tranqüilamente com a certeza de que o rio corre para o mar.

Os muros e grades das casas passavam lentamente por ele. Muros altos e baixos. Grades de todos os tipos e cores. Havia alguns em que trepadeiras vigorosas cobriam toda a extensão do muro ou grade, desfigurando totalmente o muro. Nosso amigo caminhava insistente por aquela calçada e achava muitas vezes que ela queria o impedir de passar. Havia muitas raízes e rachaduras e buracos, que contribuíam para que a calçada mais parecesse o front da primeira guerra mundial, com suas trincheiras e enormes buracos causados pelas bombas, e muitas vezes, podia avistar até mesmo pessoas lá dentro, tornando-se os soldados entrincheirados aguardando ordens de ataque ou evasão.
Continuou perspicaz em sua caminhada, pois não podia falhar naquele momento, era necessário que conseguisse chegar naquele lugar que nem mesmo ele sabia onde era e isso estava parecendo uma seqüência interminável de algum experimento onde as coisas sempre terminam onde começam.

Chegou em frente ao Clube do Alvoroço exatamente três horas depois de ter deixado apavorado o seu trabalho sem ao menos pedir ao chefe para sair, nem mesmo explicar os motivos de sua imediata ausência do local de trabalho. Lá estava ele, parado e olhando fixamente para a fachada do clube. Mais uma vez com aquele olhar citado no inicio dessa história que mais parecia um louco ou maníaco a maquinar alguma malvadeza ou loucura, obviamente.

O prédio era uma construção antiga que mais parecia um museu. Havia seis grandes colunas ao velho estilo grego ou romano, talvez um misto dos dois estilos. Essas colunas pareciam funcionar como uma amurada de proteção para os freqüentadores daquele local e assim exercia fielmente sua função, pois pra quem não sabia o que ali funcionava, jamais descobriria num primeiro olhar. A construção era bastante alta, se fosse um prédio deveria ter uns dois ou três andares. De onde ele estava não dava pra ver mais detalhes além da imensa porta cor de ébano, com um grande instrumento daqueles que a gente utiliza para bater à porta, cujo o nome eu infelizmente desconheço.

O jardim era imenso e bastante colorido, havia inúmeros tipos de plantas ornamentais e não havia nada que separasse a calçada, o jardim e o prédio do clube. Foi nesse momento que aconteceu o inesperado, pra mim é claro. Nosso amigo deu apenas alguns passos em direção à porta quando teve que encarar dos dois lados do estreito caminho por onde passava, canteiros com milhares e milhares de flores coloridas e infelizmente sem nenhuma da cor preferida do nosso herói.

Sem que mudasse qualquer traço do seu já citado rosto de gente louca, ele recuou, deu a volta, porém, se é o que vocês, leitores, estão pensando, não posso garantir que o motivo tenha sido o fato de que nenhuma daquelas pequenas, perfumadas e delicadas flores não ser da coloração de sua preferência. O fato é que ele voltou à calçada, pois estava atrasado novamente, como demonstrava os gestos frenéticos que fazia enquanto olhava pro seu relógio.

... Já na calçada, como um psicótico, olhou para um lado e outro da rua, na direção de qualquer carro, como se quisesse compreender todo o seu funcionamento somente pela pura e simples apreciação do modelo, da cor, dos tamanhos e modelos das rodas, os tipos de pneus. Parecia prestar atenção aos mínimos ruídos dos motores, perceptíveis talvez apenas aos cães....

Mas isso já é uma outra história!

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Assim, amém

Tudo é assim como qualquer outra coisa. Assim estamos parados como pedras. Assim esperamos que as coisas aconteçam. Assim ouvimos tudo aquilo que gostaríamos de dizer. Assim falamos tudo aquilo que devíamos calar. Assim somos muito mais do que na realidade. Assim realizamos todos os sonhos de outrem.

Assim rejeitamos nossos próprios sonhos, pois contradizem nossos conceitos, equivocados, a respeito da verdade. Assim, verdadeiramente, nos preocupamos com as aves, pois não sabemos como vivem. Assim questionamos sua liberdade. Assim escravizamo-nos dia após dia, insensivelmente. Assim, nós humanos, nos tornamos humanamente animalescos. Assim continuamos, prepotentemente, no caminho exato. Assim como a certeza de estarmos certos.

Assim como a pureza que nos é negada. Assim como a negação dos sentimentos sentidos e ressentidos. Assim como as sensações que nos são estranhas. Assim como a estranheza que causa as dores. Assim como as dores que revelam as provas. Assim como as provas de nossas experiências. Assim como as experiências dos reencontros.

Assim e somente assim perpetuamos nossa medíocre existência. Assim como animais que mecanicamente nascem, se reproduzem e morrem. Assim como seres feitos de chuva, vento e barro. Assim como folhas que caem, morrem, pra depois voltarem a serem folhas. Assim pela eternidade morremos. Assim eternamente mortos vivemos como se estivéssemos alcançado a plenitude. Assim, plenamente, estamos sempre parados num ponto qualquer, entre a morte e o ser.

Por assim ser, não somos. Se assim fossemos, talvez pudéssemos voltar a não ser. Quando assim pudermos viver, sem ser, já não haverá humanidade. Humanos assim vivendo. Assim e pra todo sempre assim.

Ontem foi assim. Hoje é assim. Amanhã também será assim. Assim não há chances de mudanças. Pois assim não queremos mudar. Mais do que assim, queremos repetir as lições de ontem. Para assim continuarmos iguais amanhã. Assim não se importando ou se importando com nada.
Assim nada pode nos interromper. Assim como cometas em suas órbitas. Mesmo assim, sem sentido. Assim e sempre assim. Amém.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Costureira

Lá estava ela, sentada imóvel em frente à sua máquina. Os pensamentos daquela mulher envolvidos maquinalmente na sincronia escravizante dos pontos, nas pontas de seus dedos. Mãos e pés. Às vezes esquerda, outras, direita, mas sempre em frente.

Não podia se dar ao luxo de cometer erros, pois erros custavam caro. Dinheiro que ela não tinha. Nunca tinha. Sem errar permanecia na eternidade dos dias obedecendo cegamente ordens que enchiam sua barriga e alimentavam seus filhos. Vivia assim, na infinitude dos tempos que não tinha pra pensar no que estava fazendo.

Levantava-se muito cedo. Todos os dias. O relógio era o companheiro inseparável das noites em que não conseguia dormir.
Os tecidos, as agulhas e o barulho de todas as máquinas do mundo iam morar dentro de sua cabeça. Não conseguia se separar nem por um momento daquele ambiente. Acabava um modelo e começava outro.

Nestas noites repassava detalhe por detalhe todos os passos das entediantes etapas que separavam um tecido sem forma de uma camiseta, calça, blusa ou qualquer outra peça que estivesse costurando naqueles dias.

A sensação de alivio que sentia quando acabavam uma encomenda. A euforia inicial e logo depois o desespero, quando chegava um novo modelo a ser costurado. As caras e bocas dos encarregados cobrando, olhando e vigiando. O ferro, passando as partes antes de serem costuradas. A troca da linha na máquina. O acelerador que nunca funcionava corretamente. Relembrava.

E amanhecia.

A caminho novamente da fábrica. O que a esperaria neste dia? O de sempre. Chegava, cumprimentava, ia até seu lugar, sentava, preparava sua máquina e costurava, a costureira. Até na hora do almoço era a parte fácil, mas a tarde era torturante. O calor e o barulho se multiplicavam.

Mas ela ficaria lá. Ficava lá, pois precisava. O salário não importava mais pra ela. Costurava porque sabia fazer aquilo. Mais nada tinha aprendido. Os fins de semana eram pra ela piores do que a rotina dos dias de trabalho.

Ela não gostava do que fazia, mas não sabia viver de outra maneira. Nasceu pra costurar e assim vivia, a costureira, a costurar.

Seu futuro não existia. O futuro não existia. Ela só olhava o que podia enxergar, sem planos, sem pressa e sempre. Inexoravelmente avançava
.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Medo

Tenho medo de ouvir
Medo de falar
sua voz me faz sorrir
minha voz me faz calar.

Quando olho pra você
olho sempre pra mim
o que vejo me faz crêr
no que vejo mesmo assim.

Não adianta mais falar
nem tentar me iludir
o que eu quero está lá
onde os sonhos podem ir.

Quero tudo o que é meu
nao me passe pra tráz
com aquilo que é seu
meu ou seu, tanto faz.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

A praça

Triste e alegre. A praça com seus pequenos bancos, sempre colocados perto das árvores. Durante o dia as árvores dão sombra ao descanssante, durante a noite fornecem bocados de escuridão aos amantes.

Os bancos da praça, com seus encostos e assentos, decorados com propagandas do comércio e de políticos locais, presenciam inúmeras histórias. Ouvem silenciosamente os passantes passando em frente, no leve passeio à tardinha. Alegram se contagiosamente com a alegria contagiosa dos meninos.

Os bancos ouvem suas alegrias e tristezas, as dos passantes, passeantes. Pronunciam-se silenciosamente a favor da reconciliação dos enamorados. Propõem trégua, diante das guerras travadas acirradamente pelos meninos que ali por perto brincam. Percebem o choro, embalado em muita tristeza, de um ou outro, quando por algum motivo não o deixam brincar. Aconselham os pais nos momentos de reflexão culpada pelo muito excesso rigor como trataram seus filhos, suas vidas, seus amores.

Os bancos da praça, as árvores da praça, os passeios na praça.

O menino, pequeno que era, já brinca na praça. O homem, já velho, que hoje apenas contempla sua vida passando, passeia na praça. Olha os meninos com suas bicicletas, bolas e correrias e reconhece a praça. Ele também já a fez. Ele já foi ela e agora vê os seus meninos construindo o que já, há muito, foi feito por ele. Passa o tempo, passa o vento e a praça não vai a lugar algum além daquilo que significa pros homens e meninos que a fizeram.

Todas as brincadeiras brincadas com sinceridade honesta fazem parte da sua história, da praça. Cada árvore plantada com mãos juvenis foram percebidas por ela. Todas as emoçoes, adultas ou infantis, ainda estão lá, na praça. Cada sorriso exposto no rosto de qualquer menino, homem talvez, que brincava por ali, faz parte dela. Todos os pensamentos que os homens deixaram gravados nos bancos e cascas das árvores também fizeram com que a praça se tornasse a praça. O sol e a chuva de todas as estações do tempo regaram e fizeram crescer a vida em seus canteiros. Permitiram que tudo pudesse ser sonhado, ali. Ela sonhou. Ela se tornou gente. Ou ente? Eis a praça, que sabe todos os segredos. Que conhece os homens que ali brincaram de gente grande. Que sabe dos sonhos dos meninos, que brincam brincadeiras de ser gente grande. Eis a praça. Viva.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Beira de estrada

Sentado na beira de uma estreita estrada de terra, bem pertinho de um pequeno riozinho ele morava. Sozinho ele morava ali naquela solitária casa na beira da estrada. A casa feita de madeira, peroba da boa, de corte rude. Nobre árvore escondia do frio e da chuva aquele homem. Às vezes dava pena de ver, fazia triste figura olhar daquela maneira, ele acocorado, sobre uma pedra sentado, à beira da estrada.

Fumando enrolado o seu cigarrinho de palha, acendido com o binga derramando de querosene. Acompanhado dos muitos mosquitos juntos, ladeado de pequenas pedrinhas que tentava contar inutilmente. Quem passava por ali, já via não o homem, mas apenas a figura que atrás da fumaça do cigarro existia. O que fazia ele ali? Dias todos ali? Onde ele estava? Perguntavam quem passava, os homens outros. Dias que ele não estava lá no lugar costumeiro, estranhavam. Aquele homem vivia só. Sua casa, sua estrada e seu cigarro. Suas coisas. Seu mundo? O sujeito estranho era.

Não sorria, não falava quase, mas em seus olhos, algo dizia que bom era. Levantava bem cedo, ainda com o cheiro doce da enluarada lua. Um pouco de lenha, fogão aceso e logo a casa toda impregnada pela presença da visita diária que saia do fogo. A amiga fumaça. Com a sábia paciência, devagar colocava no fogo a água pro café. Enquanto fervia a água ele podia, apaticamente, lavar o rosto. Antes de aparecer os raios primeiros do sol da manhã, lá ele estava, caminhando sem pressa pela estrada sua.

Café tomado, roupa vestida, rosto lavado e limpa alma, lá ia. Passos seus um após o outro, com paciente insistência. Pra onde caminhava com firmeza tanta e exagerada tal homem? O homem ia, apenas, olhar o que seu era. As pedras da estrada lhe davam passagem. As flores, o mato, as árvores e os bichos lhe compreendiam. Ele ia só.

Mas longe não ia de sua casa, seu mundo nunca deixava. Às vezes queria sair, mas não conseguia fugir do seu esconderijo. A vida daquele pobre rico homem era a rotina de qualquer um invejada. De muitos que querem tê-la com coragem ou covardia. Mas ele não, medo não tinha.

Pensava que poderia ter casado e filhos talvez tivesse tido. Em seguida logo pensava mais nisso não. Uma mulher aceitaria contrariada, viver a sua vida. Ele também contrariado viveria dividindo a sua com ela. E com os filhos.

Vivia só, mais facilmente.

Preferia a tristeza alegre da solidão, onde ele era realmente feliz. Esquecia-se de tudo, todos os pensamentos esvaziados de sua mente. Voltava a ser novamente o homem. Só, em sua casa, com as coisas suas. Seu cigarro, sua companhia com a estrada e o rio.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Corre

O homem corre com o vento soprando às suas costas. Corre como o vento que sopra nas suas costas. O vento sopra, assovia, ronca e estala no caminho, alcançando quem corre. O caminho se perde nos caminhos que levam aos lugares desejados pelos homens. Os lugares estão em algum lugar escondidos, pois, para o homem, são sempre difíceis de encontrar.

Perfeito é o esconderijo pra quem procura e não encontra. Os que procuram também não se acham e continuam tentando, buscando, correndo, tropeçando.... onde está agora aquele? Mais uma vez depara-se com as surpresas preparadas pra ele. Por ele. O que fez, fez tentando evitá-las. Mas agora elas estão lá. No bendito santuário construído dentro de suas consciências. Santuário erguido, derrubado, refeito, demolido e erguido novamente. Num ritual eterno. O ritual se perpetua. Homem que corre atrás e à frente de si mesmo.

Homem que sinaliza sinais que se dissipam ao vento. Homem que aprende e descobre que tem de executar suas próprias ordens. Desígnios de mentes que, confusas, desafiam até mesmo as lógicas das existências. Mas o vento sopra, empurra, conduz. Induz ao erro. Leva ao acerto. Acerta, conserta, dispara, mas não para. Homens, mulheres, não importa. A onda é inexorável, ininterrupta. O homem não pode desistir, não pode delegar.

Sua vida lhe pertence, mesmo que tente negar, ele lhe pertence. Mas não desiste, por que o que ele conhece é insuficiente para fazer com que pare. Sonha sempre, pois nos sonhos ele sempre alcança. Sonha e assim, acordado, pode perceber melhor suas realidades. O que é isso? Sonho ou realidade. Explicar os sonhos através da realidade é mais cômodo, mas fazer com que os sonhos esclareçam a realidade é muito mais estimulante. Pro homem que sai do casulo, que rompe todas as cascas e finalmente sai, isso se torna mais fácil.

Onde está você agora? O homem de quem esse texto ignóbil fala está aqui. Ele nos lê agora. Ele se identifica com os sonhos. Reconhece o vento, percebe que suas buscas são as mesmas. Mas quem é ele? Ele é realidade. É diferença e igualdade. Sinônimo e antônimo das mesmas coisas. É o que quer e o que rejeita. O que aprende e o que ensina. O que constrói e destrói. Mas é, enfim, o que tem capacidade de mudar.


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

sábado, 12 de abril de 2008

Reino Desencantado de Maharba

Ziul I era o maioral por aquelas bandas. Mandava em todo mundo. Era o rei. O chefe. Se aquele lugar fosse uma tribo, ele seria o cacique. Tinha uma personalidade bastante estranha aquela pobre criatura. Velhinho coitado, mas não entregava os pontos. Acho até que já devia estar batendo uns pinos, mas quando ele falava geralmente tentava transmitir algo de consciência. Mas na essência era um coitado. Não sabia de nada e achava que sabia.

Escorado no seu título de nobreza, achava que tinha plenos direitos sobre os que estavam diretamente ligados a ele. Seu pequenino feudo ficava numa região inóspita, num lugar onde provavelmente o Judas perdeu as meias, pois as botas ele deve ter perdido em algum lugar mais civilizado. Havia vários tipos de gente sob seus domínios.

Os pobres de espirito eram a categoria mais baixa, a base da pirâmide. Havia também os súditos que gozavam de alguns privilégios e junto com estes havia ainda os súditos que achavam que tinham algum direito. Sobre os pobres de espírito não há muito o que falar, pois eles nem mesmo sabiam o que isso significava. Sofriam calados sem ao menos questionar o porque. Pois atitudes assim não faziam parte da sua realidade. Aceitavam passiva e pacificamente todas as leis de Ziul I, o grande, o maioral. Coitados!!! Não perguntavam, não queriam saber, pois isso poderia enviá-los diretamente ao inferno. Eles não podiam se rebelar, pois isso seria o passaporte definitivo para a exclusão daquela tão perfeita sociedade organizada por Ziul I, o grande, o maioral.

Vamos chamar a Segunda categoria de súditos de súditos menores, para facilitar a explanação. Esses pobres diabos eram os mensageiros de Ziul I, o grande, o maioral. Eram eles a levar as ordens aos pobres de espírito. E faziam isso de maneira bastante duvidosa. Mas mesmo assim seguiam suas vidas achando que mandavam alguma coisa. Chegavam nas aldeias e colocavam suas próprias leis. Faça isso... desfaça aquilo... venha cá.... assim não dá.... e assim por diante. Se olhavam no espelho e se viam como uma classe que tinha poder de levar aos pobres de espírito as leis, regras, dietas e simpatias. Mas no fundo não passavam de meros garotos de recados, pois eles também viviam alienados sem perceber que eram usados o tempo todo. Faziam seu trabalho, eram pagos pra isso, mas não significavam nada no processo, pois a palavra final nunca eram deles. Eles não podiam nem ficar doentes, pois se isso acontecesse, cabeças rolavam.

Pra fiscalizar nessas questões de disciplina, Ziul I, o grande, o maioral contava com uma equipe super especializada, quero dizer treinada e adestrada, em matéria de repressão e sujeição tanto dos pobres de espírito, como dos súditos menores. Esses eram os súditos maiores. Eram num total de três.

Vamos começar pelo começo. Icari era engraçado, mais parecia um bobo da corte. Ele desfilava pelas aldeias, ruas, vielas, estreitos e pátios daquele medíocre reino como se estivesse desfilando em uma passarela de Milão. Sempre fiscalizando. Sondando e bisbilhotando. Dando ordens que muitas vezes nem mesmo Ziul I, o grande, o maioral, ficava sabendo. Pegava no pé dos pobres de espírito e também dos súditos menores, mas o que Icari não sabia era que ninguém dava a mínima pra ele. Nem ligavam para os seus desvarios e sua grande mania de grandeza. Todo mundo fingia que o ouviam e assim que ele se virava, todo mundo quase morria de rir. Nem os pobres de espírito, que não sabiam de nada, respeitavam aquela pobre criatura. Mas ele se achava e seguia sua rotina.

Ileon, era bastante diferente. Muito mais sutil e traiçoeiro. Lidava com situações difíceis com maestria. Nunca ficava por baixo. Tinha o olho e as mãos em tudo. Sabia de tudo. Cuidava da vida de todo mundo sem ao menos mover uma palha. Apenas utilizava a sua extrema facilidade em costurar acordos e dissimular sua própria opinião quando, eventualmente Ziul I, o grande, o maioral, se indispunha com ele. Muito perigoso, até mesmo Icari o temia. Ardiloso, sabia como se livrar das más situações e sabia muito bem como imputar a culpa em algum idiota. Geralmente sobrava pros súditos menores, que entravam na armação sem perceber e quando viam já estavam comprometidos até o pescoço.

E por último Anairda. Esse era o chefe do exército e como todo militar, seguia as regras literalmente. Nunca jogava água fora da bacia, digo, nunca desobedecia as ordens. Estava sempre a disposição de Ziul I o grande, o maioral. Não tinha o menor escrúpulo. Se necessário fosse entregava até a própria mãe. Na verdade era um tremendo de um puxa saco. Que vivia de bajular o rei. As vezes (muitas vezes) contrariava suas próprias idéias, objetivos e planos, somente para agradar o chefinho. Quantas e quantas vezes foi pego falando consigo mesmo se deveria ou não executar tal ordem. Mas no fim sempre obedecia, não importando o quanto aquela ordem contrariava suas próprias convicções.

Para concluir essa pequena e idiota história sobre um lugar esquecido e tão medíocre quanto esse texto, digo e repito o que vi durante os muitos e muitos dias em que Ziul I, o grande, o maioral, foi o manda chuva daquele lugar. O Reino de Maharba se acabou, definhou como um enfermo, como um moribundo à beira da morte. Morreu mesmo. Ali nada mais acontecia. Era uma pasmaceira danada, onde ninguém tinha coragem pra nada. O reino ficou entregue aos ratos e baratas. Não se fazia nada, por que Ziul I o grande, o maioral,direta ou indiretamente, não deixava. Ou porque o medo de serem enredados nas teias de intrigas dos súditos maiores, paralisa os súditos menores. Os próprios súditos maiores eram os que mais fomentavam a mediocridade do reino, com seus eternos e gigantescos egos, onde só cabiam a satisfação de seus próprios interesses.

E Maharba se tornou então título de histórias como essa. Triste e deprimente, mas ao mesmo tempo cômica e alegre.Fim


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Abstrações e Psicologismos

Sonegação negando a certeza
Patologias que adoecem pra vida
Saudades querendo não ver
Semelhanças que lembram o diverso

Abstrações de mentes perturbadas
Psicologismos de gentes equivocadas
Perdição como face dos sonhos
Pesadelos como cena do crime

O fogo acalmando o espírito
Virtudes que escondem o proibido
Ódios sentindo tesão
Esconderijos que revelam o que são

Brasas como gelo no whiski
Lama como apoio aos medos
Verbos como inicio de tudo
Provérbios como provas do mundo

Inimigos tecendo o perdão
Ironias que querem dizer
Palavras soando em vão
Promessas que fingem fazer

Sonhos como vidas sem ar
Respiração como incentivo ao fim
Manhãs como inicio e fim
Finais como alegrias e dores

Problemas durando a morte
Mentiras que cheiram a sorte
Rancores valendo a razão
Alianças que trincam na mão

Estranhos como querem lá fora
Mentiras como são no sermão
Caminhos como guerra agora
Guerras como acordo de então


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2007.

Oração

Eu te procuro em todos os lugares
Nos cantos escuros do meu silêncio
Respostas ditas apenas a mim
Minha busca se faz sem sentido
Ser imaginário
Eu sou imaginário
Pensamentos que nunca se encontram
Idéias e loucuras distantes
Viagem ao redor do meu mundo
O que sinto não me diz nada
Pra onde vou não me acho

Estrelas caindo de todos os céus
Voltando pra casa enfim
O vento soprando sempre ao contrário
Amores que não significam amor
Ódios são desejos
A beleza está em toda a parte
Mas procuro em lugar nenhum
Quando os milagres acontecem
Estou distante e perplexo
Perceber como tudo acontece
Não é o mais importante
Pois ele não é nada pra mim
Ele não vive na minha realidade
Estou bem sem tudo isso
Quando tudo é mal
Ainda assim vejo algum signo

Agora acabou a prece
Desacredito que ele ainda ouça
Não acredito em verdade no que foi escrito
E as proezas descritas
Quem sabe?
Resolver todos os problemas
Um dilema, teorema
Ou pura invenção
No principio de tudo
Fez-me
E eu me vingo
Reconstruindo o que era pra ser seu
Eterno, imutável e intransponível
Ser imaginário


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Final feliz

À noite, olho o céu
À noite vejo a lua
À noite penso no sol
Pássaros voam na noite
Meu pensamento se desfaz
E se refaz numa agonia
A solidão me açoita
É pesada a tortura
De dia olho o céu
Só vejo escuridão
Não vejo muita coisa
As flores estão todas abertas
O mundo se movimenta
O movimento é continuo
É dinâmica a vida
Energia que alimenta
Os sonhos de anteontem
Os amores de depois de amanhã
Os sabores que o vento traz
Os odores que sempre ficam
As dores que atormentam
A tristeza que acompanha
A morte não é estranha
Mas viver é bem pior
Olho tudo o que gosto
Interessa-me as formigas
Os cachorros, os gatos e os besouros
O que me interessa
Admiro, admito
Adjetivos não encontro
Pois quero levar tudo comigo
Não importa pra onde for
Talvez nem vá, fique
Mas não quero ficar
A tortura esgota
O desgosto apavora
Assim não há descanso
Não há paz no silencio
No escuro só haverá choro
Medos de criança
A chuva molha a casa
A água entra por todos os lados
Nas frestas e buracos
No escuro ninguém vê
Ela escorre e encharca
Os vapores se dissipam
As lembranças afloram
O vento e a chuva
A noite e o sol
A lua e os besouros
Fazem muito bem
Mesmo fazendo mal



SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2007.

Evolução

Estamos todos perdidos no mesmo mundo de ilusões.
Tudo é engano e as pessoas desenganam.
A evolução do homem busca a tragédia.
Estamos condenados e o fim já se aproxima.
Apaixonamos-nos por nós mesmos.
Mais triste torna-se o nosso futuro.
Mais um engano sem solução.
Pra onde estamos indo não há volta.
Nem percebemos que estamos errados.
Cegos, permanecemos amarrados.
Aos nossos interesses individuais.
Somos suficientes apenas a nós mesmos.
Nós só precisamos olhar pra frente.
Pois não existe mais ninguém.
E nada nos faz desviar do nosso destino.
Ansiedade de termos alguma coisa.
Pra que sermos alguma coisa?
Não percebemos que não somos o mundo.
Sozinhos não somos nada.
O universo conspira contra nós.
E nós somos seu principal auxiliar.
Tudo vai acabar como começou.
O nada será para nós uma recompensa.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Atitudes

Acorde
Levante
Desperte
Observe

Perceba
Reflita
Considere
Conclua

Aja
Movimente-se
Ajude
Participe

Reclame
Bote a boca no mundo
Exponha
Sugira

Mexa-se
Não espere
Faça
Ouça

Desconfie
Acredite

Não pare

Entenda
Conserte
Viaje
Volte

Não abandone
Queira
Mude
Leia

O mundo


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Lente

Precisamos
De uma lente
Que aumente
Totalmente
As virtudes
Da gente

Mas que pena
Tal lente é pequena
É como antena
Sem receptor
E sempre camufla
O velhor feitor

A gente
Compreende
Entende até
O que ignoramos
Se pudéssemos saber
Seria pior

Ou seria melhor?
Ou seria igual?
Ou ainda, banal?
Ou mesmo frugal?

Quem sabe um dia
A lente de aumento
Exista enfim
Enquanto isso
Seguimos usando
A de diminuir

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Todos iguais?

Depende do que sabemos. Mas não, não afirmo isso categoricamente. Podemos conhecer sem ser iguais. Às vezes ignoramos completamente e somos muito mais iguais do que os outros. Assim, diante desse exercício reflexivo, podemos considerar que a igualdade não é exatamente aquilo que sabemos. Os iguais muitas vezes podem ser diferentes e muitas e muitas outras vezes é necessário ser igual para que possamos nos tornar diferentes.

Há ainda momentos em que somos tão diferentes que nos tornamos impossíveis de identificar, tal a semelhança com os outros. Nestes momentos a única coisa que nos difere da massa não é apenas o que sabemos, mas principalmente o que fazemos, construímos e buscamos com o nosso conhecimento.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Pedido

O arrependimento é um sentimento muito triste e deprimente. O ditado diz que nos arrepender do que fazemos é melhor do que não fazer. Mas hoje não mais posso crer nesse dito. Vejo claramente que fiz tudo errado. Preferia mil vezes não ter feito. Posso compreender agora que não podemos perder as amizades que conquistamos gratuitamente e que só percebemos que nos faz falta quando as perdemos. Não há justificativas para um ato tão impensado. Impensado. Quando olho pra trás, entendo, agora, que não somos e não estamos sozinhos.

Nossa vida tem que ser construída sobre bases sólidas e essa base, pude constatar que só se edifica com fortes relações de amizade entre as pessoas. Sempre te admirei e isso se deu de forma natural. Tudo deu certo, tudo se encaixou. Eu joguei tudo fora e me sinto o pior dos homens. Ao mesmo tempo tenho que te agradecer, pois você me mostrou exatamente o que estava precisando ver. O mundo não gira em torno de mim e das minhas opiniões. As pessoas não vivem em função de mim.

Sempre tentei me policiar, confesso, mas foi preciso que eu perdesse a sua amizade para que eu fosse encontrar as respostas que eu buscava, e que sozinho não estava conseguindo encontrar. Acredite no que estou dizendo, você é muito importante pra mim e sei que vou precisar muito ainda da sua sabedoria e experiência. Mas isso não é tudo. Você me mostrou, mesmo sem palavras ou gestos, o caminho a ser seguido. E eu vou carregar pro resto da minha vida essa tão grande lição de humildade que você me ofereceu. Humildade hoje é uma palavra muito difícil pra mim, mas pude perceber finalmente, e a tempo, seu fiel significado.

Humildade pra mim, a partir de agora, significa paz. Paz de consciência, de coração. E é por essa paz, que eu perdi, que peço humildemente seu perdão. Você pode não me perdoar, por enquanto, eu entenderei, mas isso não vai me fazer desistir da nossa amizade. Um outro ditado diz que a amizade é como um cristal que quando trinca ou quebra não dá mais pra consertar. Mas se assim for, também não posso acreditar nesse dito. Farei tudo o que tiver ao meu alcance e o impossível pra reparar nossa amizade e não vou me contentar em perdê-la.

Você foi colocada em meu caminho e não foi por acaso, por isso pode ter certeza que não vou desperdiçar a chance que os deuses me deram pra consertar minha bússola ainda a tempo de mudar de rumo e encontrar o meu norte.


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Santa Ignorância

Ao entrar num estabelecimento de educação público, notei que os garotos eram bastante indisciplinados, então perguntei se eles nao gostavam da escola e de estudar e qual era o motivo do desinteresse.Um dos garotos me respondeu da seguinte forma: "Ah!!! Eu vou bagunçar mesmo, pois o colégio é público mesmo! Além do mais, sei que vou passar!!". Esse é apenas um exemplo da maneira de como o brasileiro trata o seu dinheiro, sem falar no problema pelo qual passa nosso sistema de educação.Bem, mas isso já é uma outra crítica.

Mal sabem nos nossos cidadãos brasileiros que eles teriam uma realidade diferente se soubessem pra onde realmente vai o seu dinheiro. A grande maioria da população ignora os seus direitos, seus deveres e isso, podemos primariamente, imputar a uma questão cultura, mas o certo é que no Brasil e principalmente em pequenas cidades as pessoas não dão a mínima importância a essas questões. Não sabem que no nosso país a carga tributária é exageradamente grande e que a tributação está disposta de maneira inversa, onde beneficia a classe de maior poder aquisitivo em detrimento da maioria trabalhadora.

As pessoas ao se ausentarem das questões públicas, tais como a do exemplo acima, ignoram que pagam imposto em tudo o que consomem. Ignoram que ao acender uma lâmpada, comprar cigarros, combustíveis, alimentos, etc., estão pagando uma alta porcentagem de impostos. Só pra exemplificar, ao comprar um pacote de arroz estamos pagando mais ou menos 40% de impostos e esta taxa varia de estado pra estado. Isso quer dizer que se o arroz custa R$ 6,00, o preço real é exatamente R$ 3,6 e o restante vai para os cofres públicos.

Sendo assim meus amigos cidadãos, o significado do termo público deveria ser revisto, passando a representar algo que pagamos e bem caro. Que grande idiotice é achar que o público é de graça!! Muitas pessoas acreditam realmente que a população não contribui em nada para a arrecadação, seja municipal, estadual ou nacional, a não ser o IPTU e alguns outros impostos. Há pessoas, pobres ignorantes, que crêem que a CPMF, só é cobrada dos ricos, pois pobre não tem conta corrente. Mas essas mesmas pessoas se esquecem dos inúmeros outros impostos que estão imbutidos nos produtos que consumimos.

Não vou listá-los aqui pra não tornar o texto mais chato ainda. Nos países da Europa e até mesmo em alguns países da América Latina a carga tributária se dá de maneira mais aguda na renda das pessoas. Já no nosso brasilsão, o consumidor final é quem paga a conta. Na França do final do século XVIII e início do XIX, o povo, ao se sentir explorado pelo sistema, rebelou-se, ocasionando uma grande revolução. Fazendo uma comparação entre a França ou até mesmo a Argentina, onde ocorreram movimentos populares por mudanças, e o Brasil de hoje, conclui-se que nós não sabemos a força que temos e talvez nunca saibamos. Enquanto isso os “poderosos” comemoram nossa ignorância.


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Feliz Natal!!!

O fim está chegando. Mas não se assuste, é apenas o fim de ano. Porém em sendo um fim, implica em coisas que habitualmente estamos acostumados e que não deveriam ser assim. Você já comprou todos os presentes? Como todo bom brasileiro, com certeza ainda não, afinal ainda há tempo. Tenho uma pergunta: qual é o significado do natal?

O senso comum diz que é a celebração do nascimento de Cristo e que devemos, nessa ocasião, cultivar os bons sentimentos, a fraternidade e a caridade, etc. Mas agora me ocorreu outra pergunta, aliás, inúmeras outras perguntas e por favor, me perdoem se eu tornar esse texto chato: qual é a ligação do papai noel conosco, brasileiros que somos? Porque, todos os anos, enfeitamos com o maior capricho as famigeradas árvores de natal em nossas casas? Ah! Qual é o motivo, escondido nas entrelinhas, pelo qual colocamos todas aquelas luzinhas nas fachadas de nossas casas, prédios públicos, praças, etc? Quantas vezes você já viu neve, além daquelas maravilhosas cenas de cinema ou novela? E as renas?

Se ao menos fossem burros, a gente entenderia. Pra todas essas e muitas outras perguntas existem respostas, o que não sabemos é que as respostas são dadas de acordo com muitos interesses. Por exemplo: o papai noel, em sua origem, pra surpresa geral, vestia-se de azul e que o vermelho foi adotado e socado guela abaixo de países como o nosso, para atender às conveniências de uma certa companhia de refrigerantes mundialmente conhecida. Assim, as respostas para as outras questões ficam subentendidas, e caso você não entenda, pô cara, faz uma forcinha. Estamos totalmente vinculados à cultura externa, principalmente daquele grandioso país ao norte do continente.

O natal, pobre coitado, é simplesmente mais uma data onde as pessoas gastam o que não tem pra que a lógica do mercado se justifique. É engraçado ver as pessoas discursarem, hipócritamente, que no natal as pessoas se tornam melhores. Pura bobagem demagógica. As pessoas deveriam ser melhores todos os dias, todos os anos, a vida inteira. Mas assim não é legal e assim não haveria presentes e assim onde iria parar o bom e velho saco do noel? Em nossas lareiras é que não. Até porque lareira não faz parte da nossa cultura, mas isso é uma outra pergunta.

Sendo assim, nós brasileiros e bons kaloreenses que somos, estamos condenados, digo, salvos, pelo grandioso espírito de natal e que, neste fim de ano todas as diferenças serão esquecidas e não haverá mais discórdia, pelo menos em quanto durar o fatídico dia de natal. Depois, estaremos livres pra voltarmos a ser o que éramos antes. Ou seja, voltarmos a ser ninguém. Mas ao menos seremos ninguéns cristãos.


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Milagres

O que somos e o que não somos não importa. Importante mesmo é o que queremos ser. A vida não traz nada que não soubéssemos. Os amigos nos fazem o que somos. O mundo constrói o que temos. Lá fora tudo é perversão. Os que estão próximos, dizem pra onde devemos seguir. Olhamos ao redor e não enxergamos uma saída. Hipocrisia constantemente cultuada. O diferente paga a diferença. Não há nada a fazer. Somos o que somos. Assim a vida segue. Não olhamos pra traz. As lições levamos conosco. O resto deixamos em qualquer lugar.

Os amores e os ódios nos alimentam. As ambições nos edificam. Mas somos o que somos. Onde está deus? Esconde-se de vergonha do que fez. Nós somos o que somos. E ele está isento de culpa. Buscamos esse destino com nossas próprias vontades. Não queremos perceber os milagres. Abusamos de nossa prepotência e intransigência. Somos os melhores dos melhores. A vida não tem mais graça. O melhor agora é ser o melhor lá. Porque aqui não há mais pra onde seguir. Talvez todas as pessoas do mundo estejam doentes.

Mas se isso for doença, nós queremos adoecer cronicamente. Quanto mais temos mais queremos. Quanto mais subimos, mais queremos pisar nos que estão abaixo. Todo mundo pode Ter tudo o que quiser. Basta querer. Quem não tem é porque verdadeiramente não quer. O discurso está errado. A culpa de todas as desgraças é o indivíduo. O mundo é de quem assume os riscos. Mesmo pensando que podemos ir para o "inferno", continuamos a embelezar nossos egos com conquistas que não são nossas. Mesmo assim preferimos acreditar que ninguém nos deu nada. Preferimos crer que tudo o que temos é fruto do nosso trabalho.

Se somos tão bem sucedidos, o que pode nos afetar? As desgraças do mundo não nos interessa. A fome das crianças etíopes e brasileiras não nos diz nada. A quantidade de dinheiro público que é desviada não causa sofrimento, até porque uma boa parte desse dinheiro vem para o nosso bolso. Pra que nos preocupar com todas essas questões, quando sabemos que sempre houve e sempre haverá gente de sobra pra nos manter nos topo. Mas isso também não nos interessa.

Queremos mais. Sempre mais. E, como já disse, tudo que queremos basta pegar. Não acreditamos mais em milagres. Nunca acreditamos na existência de tal bobagem. Oras, uma flor desabrochando é apenas uma flor. Um bebe nascendo também é apenas mais um, vai sofrer se não for como nós, mas se for.... Milagres!!!


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

João Ninguém

Sou eu. Moro em lugar nenhum. Aqui existem muitas pessoas como eu. Existem também muitas outras que são ninguéns melhores do que eu. A vida é tranqüila, com poucos fatos que mereçam menção nesse humilde relato. As vezes acontecem algumas coisas que ninguém se interessa em saber. E esse sou eu. Eles olham pra mim e por eu ser ninguém, acham que alguém como eu nunca, jamais, vai mudar de condição. Eu olho pra eles e faço exatamente a reflexão inversa. Tenho pena, pois apesar deles serem ninguéns muito melhores do que eu, acredito cegamente que na verdade eles nunca se tornarão ninguéns como eu.

Não sou melhor do que eles. Não sou mais bonito, nem mais inteligente, não tenho o melhor automóvel, nem a casa mais bonita, não freqüento os melhores ambientes, não me visto com roupa de grife, muito menos tenho mais dinheiro. Mas tem uma coisa deles que me causa inveja. E a inveja é um sentimento muito bom, no meu caso. As vezes dói. Fico aqui fazendo os meus parafusos e nos pensamentos que saem das pontas dos meus dedos pra ir parar nesse longo e chato texto, imagino como seria bom viver superficialmente como eles. Ignorar completamente os outros, ou melhor, nem percebê-los. Ou melhor ainda, ter a certeza que todos em volta não são ninguém, aliás, são ninguém. Alguém poderia achar que estou errado. Mas eu reafirmo. Ser como eles deve ser o máximo.

Mas isso nunca vai acontecer. Primeiro por que nessa cidade não existe alguém. Segundo por que os ninguéns daqui não fariam esse tipo de pergunta. Não percebem alguém além dos seus próprios mundos. Se fossem como estrelas, com certeza não haveria um planeta sequer girando em torno deles. Levo minha vida do jeito que dá. Tento romper todos os obstáculos que me separam dessa Grã categoria de ninguéns especiais, não me contento com o que já conquistei, pois se vocês não sabem, eu era um ninguém da base, da turma que carrega o piano.

Agora já melhorei muito. Hoje subi um degrau e posso me orgulhar de poder sentar na banqueta para tocar as mais maravilhosas melodias no belo piano, que não mais foi carregado por mim. Mas ainda quero mais. Ainda vou ser um ninguém melhor. Ainda pisarei no tapete vermelho na entrada do teatro. Reservarão pra mim um camarote vip, com atendimento personalizado e lá de cima, com a visão privilegiada, poderei curtir o espetáculo como os outros ninguéns, sem dar a mínima importância aos demais espectadores, nem perceber que o piano está lá e que é tocado por ninguém, carregado por ninguém.

Enfim, poderei então olhar para os outros e esquecer que um dia fui um ninguém como eles. Mas enquanto esse dia não chega... paciência. A inveja que tenho deles é uma das coisas que me move, sempre, rumo a um lugar que é meu também. A outra coisa que me impulsiona é o desprezo que os outros ninguéns, os especiais e melhores que eu, sentem por qualquer um da minha classe, isso me faz querer com mais ganância o lugar deles. João ninguém sim, mas ninguém pode me acusar de permanecer, aceitar, passivamente como um cordeiro, o destino imposto por eles.


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Pra que servem as letras?

Meu nome é Dins. Acho um belo nome. Meu pai colocou esse nome porque não gosta de palavras complicadas. Ouvia falar muito que o "Dins" era muito bom e durável. Ele achava muito bonito o som dessa palavra. Ao me registrar, ainda quiseram colocar Jeans, mas meu pai insistentemente e até teimosamente preferiu Dins. Bem, voltemos ao assunto. Pra que servem as letras? Fico pensando qual é o motivo delas existirem e não consigo compreender o porque desse amontoado de símbolos somente para representarem o que dizemos.

Se falamos e as pessoa ouvem, não há necessidade de representar isso de forma escrita e sendo assim acho uma inutilidade total e completa todo esse arsenal impresso que a humanidade acumulou no decorrer da história. Vejam bem, tentem acompanhar meu raciocínio. Tudo o que é escrito, por mais importante que seja, se é que existe algo escrito importante, mais dia menos dia acaba indo para o lixo. Sem falar que o que se escreve pode facilmente ser mudado, transfigurado, disfarçado e alterado, assim, ao meu ver, as palavras se fossem apenas ditas economizaríamos milhares e milhares de arvores.

Aí vocês podem me dizer que se nos comunicássemos apenas através da fala, as coisas que dissemos poderiam ser distorcidas, tudo bem, concordo com vocês, mas pelo menos economizaríamos as árvores. Há infinitas justificativas, mas vou me apegar apenas a uma e a mais importante é claro. Se não houvesse a palavra escrita não precisaríamos ler e venhamos e convenhamos isso não é o máximo? Imagina se não precisássemos ler uma linha de nada, de coisa alguma. Seria muito legal.

Na escola por exemplo, não existiria biblioteca, até porque é um espaço muito mal aproveitado. Tudo seria passível de se ouvir. Até as provas seriam apenas faladas. Sem papel e sem controle. Agora o melhor que a minha imaginação faz é ver as pessoas livres dos grilhões que as prendem dessa maldição que é a palavra escrita. No comércio por exemplo, os rótulos dos produtos poderiam ter dispositivos que nos dissessem o que precisássemos saber a respeito do produto. As compras poderiam ficar muito mais responsáveis e dessa maneira somente compraríamos o que fosse bom aos nossos ouvidos. Assim como meu nome. DINS, não é lindo?

Um dia desses uma pessoa falou pra mim que não entende porque as pessoas precisam de livros e eu finalmente pude conversar abertamente com alguém que me entendesse. Essa pessoa disse que não podemos perder tempo com livros, que há coisas muito mais importantes pra se resolver. Fiquei emocionado. Achei que somente eu que pensava assim. Livros!!! Perda de tempo total. Não precisamos de livros. Não temos tempo pra perder com eles, além de que todas as palavras escritas neles, podemos simplesmente ouvir em qualquer lugar, aprender de qualquer maneira, afinal são apenas letras e símbolos. Meu nome é Dins e agora estou confuso, pois fui traído. Traído por mim mesmo. Eu sabia que tinha algo errado e somente agora descobri.

Como são as coisas... depois desse lindo discurso tentando desconstruir a importância dos símbolos que compõem cada palavra deste texto maravilhoso que você acabou de ler, percebo que não deveria tê-lo feito. Afinal sou contra as palavras escritas e prometo a vocês que os próximos serão em Mp3.


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Divindade

O que é Deus? Onde está Deus? Segundo alguns autores, Deus está morto. O matamos. Outros grandes pensadores dizem que foram nós, homens, quem fizemos Deus. Mas Deus está no pensamento humano. O pensamento é Deus. Se o pensamento é Deus, e isso é condição pra nossa existência, então somos deuses. Se a condição de nossa existência não é o pensamento, se nossa existência condiciona o pensamento, então continuamos a ser deuses. Considerar que nascemos com idéias que representam verdades absolutas pode ser arriscado.


A razão nos leva exatamente a um local onde Deus é e está. Está em nós e em nenhum outro lugar. Deus sou eu e você e nenhuma outra pessoa ou ente. Eu fiz Deus à minha imagem e semelhança e não ao contrário. O homem pode se libertar dos grilhões onde ele mesmo se prendeu. A compreensão de liberdade tem que avançar até o ponto em que Deus não mais seja um ente externo ao homem e sim o próprio homem. O mesmo homem que cria é o que destrói. O mesmo homem que ama é o que odeia. O homem é o réu e o juiz. Segundo os conceitos próprios de cada um, o homem deve ser capaz de perceber seus limites e os do outro.

O conhecimento sobre o as coisas deste e de outros mundos não pode torná-lo escravo de seus medos. O medo nesse processo se auto extinguirá, pois o desconhecido obscurece mentes e corações humanos. Será que nosso Deus não quer que conheçamos? Estamos proibidos de investigar o que nos intriga? Não podemos buscar soluções para nossos problemas porque Deus não permite? Deus!!! Deus quer que busquemos sim. Porque somos deuses. Porque nos permitimos viver conforme nossas próprias leis.

E que leis são essas?

Leis que não nos privem de nada. Leis que não escravizem mentes. Leis que libertem, finalmente, o homem da servidão imposta por ele mesmo, e sempre creditada a Deus. O céu e o inferno está longe e perto, sutil e saliente, dentro e fora, animado e inanimado. Céu e inferno são extremos da mesma coisa que se juntam ao final. Céu e inferno são justificativas humanas para culpar o homem de um crime que é divino e também para imputar aos "puros de coração" todas as virtudes sub-divinas que o homem não "possui".

Extingamos tais conceitos de nossa vida, pois eles apenas nos seguram num estágio que obrigatoriamente temos que ultrapassar. Temos que sair das trevas. Temos que nos tornar deuses. Ao encontrarmos Deus em nós mesmos, estaremos finalmente alcançando o objetivo de todas as religiões. Saberemos quem somos.

Ousaremos nos permitir viver sem culpas. Colocaremos nós mesmos como prioridade da vida, sabendo que nós não somos mais indivíduo. A preocupação comigo já não terá validade se ao meu lado alguém sofrer. Se ao meu redor alguém ainda não tiver alcançado tal estagio de compreensão, também eu não terei chegado. Assim, caminhemos rumo ao desconhecido sem medos e superstições. Sem trégua. Sem pausa. A vida nos reserva grandes surpresas e vamos estar preparados. Nossa existência será justificada pelos nosso atos e julgadas pelo grandioso juiz: nossa própria consciência. Se permitirmos, podemos voar. Podemos ser. E sendo, fazemos com que nosso pensamento se volte para o que somos. É um caminho sem volta. Talvez ainda tenhamos que passar por muito fogo e este é o elemento que tudo pode. Destrói, mas de suas cinzas brotam vidas novas. Novo homem. Novo Deus. Realidade diferente.



SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2010.