Caído, como se tivesse sido jogado, como se fosse um simples boneco.
Esparramado no chão. Mas não fui arremessado por ninguém. Do canto
de minha boca escorria um sangue amargo, que ainda conseguia tentar
engolir. Não sentia minhas pernas e nem os braços, mas meus ouvidos
me diziam o que não queria ouvir.
Olhos curiosos me olhavam e julgavam, alguns me condenavam. Era
culpado pela minha morte, ou quase morte. Outros advogavam em meu
favor, fervorosamente, atribuindo toda a culpa ao motorista do ônibus
que me atropelara:
- Ele estava correndo demais!
- Parecia estar bêbado!
- Coitado do moço, se quebrou todo!
Essas opiniões eu podia ouvir claramente. Meu atropelamento era o
centro das atenções naquela manhã cinzenta de segunda-feira. Eu
queria permanecer vivo mais alguns momentos na esperança dela
aparecer. Eu esperaria eternamente. Mas ela não fazia parte daquela
pequena multidão que me observava morrer. Ela não viera se despedir
de mim.
Eu não a culpo. Acho que eu também não teria coragem de vê-la
morrendo. Talvez ela nem tenha visto o acidente, ou se viu, não
percebeu que o ator principal do espetáculo era eu. Há também a
possibilidade dela ter ficado feliz com o meu destino. Ela, ao ver o
acidente, pode ter pensado, com toda a justiça do mundo, que morrer
era pouco pra um homem como eu. São muitas as possibilidades e
poderia gastar o pouco tempo que tenho tentando identificar uma como
provável. O fato é que ela não estava lá.
Eu mereci todo e qualquer pensamento dela, tendo visto ou não o meu
acidente. Não mereci qualquer tipo de perdão, se é que existem
diferentes tipos de perdões.
Hoje ao sair de casa só tinha um destino. Era presenciar minha
própria morte, mas não sabia disso, obviamente. Achava que ficaria
a manhã inteira sentado no banco da pequena praça, em frente ao
trabalho dela. Esperaria pacientemente que ela saísse pra almoçar.
Durante a longa espera pensaria numa forma convincente de pedir
perdão. Ensaiaria cada frase, cada palavra, cada silaba, que por
acaso não fosse sincera. A espera também serviria pra eu refletir
em tudo o que havia feito. Mesmo achando que esse “tudo” não era
tão grave assim. Tendo certeza absoluta que ela havia exagerado ao
dizer todas aquelas ofensas quando saiu de casa.
Esse era meu plano pra hoje. Mas como nem tudo é como a gente
planeja, lá estava, naquele encontro marcado, involuntariamente, com
a morte.
Ainda devia ter algum tempo, e isso era bom, já que ainda tinha
algumas considerações a fazer. Não conseguia, por mais que me
esforçasse, me arrepender do que fiz. Fiz por que quis e talvez
fizesse outra vez se houvesse outra oportunidade. Não havia como se
arrepender. Não havia como voltar atrás. Eu nem queria.
Ela não compreendeu. Não entendeu minha alma. Talvez tenha ocorrido
o contrário. Quem sabe, não é mesmo?
Agora, nessa fração de segundo de vida que ainda me resta, consigo
tempo pra pensar nisso. Pesar minhas atitudes e perceber que minhas
certezas sempre foram absolutas e por isso, jamais consegui enxergar
as verdades dela. Seus desejos e vontades sempre foram suplantadas
por uma argumentação fundamentada no meu gigantesco ego.
Nesse momento vejo e lembro de todas as ocasiões em que ela, passiva
e pacificamente, aceitou minhas decisões. Não eram simples opiniões
sobre sua roupa, filmes a assistir, sabor das pizzas, sobre o jantar,
sobre o almoço, sobre nossas parcas amizades, e sim decretos que não
davam a mínima chance de recurso a ela.
Sim, eu fui assim. Eu a massacrei sob a sola do sapato como se fosse
uma barata. Eu joguei fora tudo de bom que ela sentia por mim. Fui
mesmo um desgraçado!
Era só meu aquele fim. Como poderia pedir perdão com as palavras
todas da boca pra fora?
Se tivesse conseguido atravessar a rua. Se tivesse falado com ela.
Ela teria voltado pra mim. Podia ver o brilho naqueles olhos, lindos!
Aquele brilho que significava um perdão irrestrito. Sem perguntas,
sem por quês, sem lembranças, sem vingança. Nos beijaríamos e de
mãos dadas iríamos almoçar. E nesse ponto, recomeçaria a relação
anormal de opressão que havia entre nós. Tudo igual antes.
Os médicos chegaram, com o alarme habitual em ocasiões de
emergência. Não vi e nem ouvi, mas imaginei a ambulância do
resgate abrindo caminho naquele transito infernal com luzes ligadas e
com o barulho ensurdecedor da sirene. Me sentia um sujeito
importante. Tudo aquilo era pra mim. Toda aquela atenção dedicada
ao meu alquebrado corpo me fez sentir menos culpado pelos meus
crimes. Me fez pensar que, apesar de merecer o castigo, ainda tinha
algum valor.
Afastaram os curiosos. Não me lembro se foram os médicos ou os
policiais que fizeram isso! Bem, não importava. O que importava era
que os olhares sobre o que restava de mim se reduziram a três. Um
dos médicos segurava um balão de oxigênio e me olhava com um
desdém que me incomodava. Sentia que aquele médico não tinha
paixão pelo seu trabalho. Olhava pra mim e eu me sentia o resto do
mundo. O pior dos animais ainda seria melhor do que eu. Desviei o
olhar pro outro médico. Este, veio, trôpego, carregando uma maca.
Tinha a expressão preocupada que todos os profissionais deveriam
carregar no rosto. Talvez pensasse na minha morte e estivesse com
medo. Talvez fosse seu primeiro atendimento e aquilo o estivesse
assustando. Vai saber? São apenas possibilidades.
Por último notei naquele que me atendeu diretamente. Foi impossível
não notar, já que ele estava bem pertinho de mim. Face a face
comigo. Falava coisas que eu não entendia. Eu me vi nos seus olhos.
Vi um brilho naquele olhar. O mesmo brilho que havia no olhar dela.
Aquele olhar me pedia pra não fechar os olhos, pra que eu me
mantivesse acordado, lúcido. Eu estava lúcido. Nunca fui tão
lúcido quanto naquele momento.
Tudo ficou confuso de repente. Enxerguei naquele olhar, pela última
vez, a vida que perdia e pude sentir o aconchego da morte. Não
fiquei triste, nem decepcionado. Um acidente me fez ver tudo aquilo
que fui pra ela. O brilho no olhar daquele médico me fez, humilde e
pateticamente, pedir perdão.
Quando o despertador tocou, ela já estava de pé. No banheiro, em
frente ao espelho, aos soluços, chorava desesperada. A noite havia
sido a pior de todas. Seus olhos, com olheiras enormes, denunciavam
um sono que não viera. Escovou os dentes, arrumou os cabelos, fez
uma leve maquiagem, vestiu-se com a roupa de trabalho, calçou os
sapatos, de salto é claro, pegou sua bolsa e saiu. No ponto de
ônibus, enquanto esperava, teve tempo de enviar uma mensagem pra
mim.
Já é meio dia e está quase na hora dela sair pro almoço e eu
continuo sentado neste banco de praça. Leio, indeciso, mais uma vez,
a mensagem que ela enviou esta manhã:“Não almoçaremos juntos
hoje”. Não sei se atravesso a rua agora ou espero o sinal fechar.
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