quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Sinal

Caído, como se tivesse sido jogado, como se fosse um simples boneco. Esparramado no chão. Mas não fui arremessado por ninguém. Do canto de minha boca escorria um sangue amargo, que ainda conseguia tentar engolir. Não sentia minhas pernas e nem os braços, mas meus ouvidos me diziam o que não queria ouvir.
Olhos curiosos me olhavam e julgavam, alguns me condenavam. Era culpado pela minha morte, ou quase morte. Outros advogavam em meu favor, fervorosamente, atribuindo toda a culpa ao motorista do ônibus que me atropelara:
- Ele estava correndo demais!
- Parecia estar bêbado!
- Coitado do moço, se quebrou todo!
Essas opiniões eu podia ouvir claramente. Meu atropelamento era o centro das atenções naquela manhã cinzenta de segunda-feira. Eu queria permanecer vivo mais alguns momentos na esperança dela aparecer. Eu esperaria eternamente. Mas ela não fazia parte daquela pequena multidão que me observava morrer. Ela não viera se despedir de mim.
Eu não a culpo. Acho que eu também não teria coragem de vê-la morrendo. Talvez ela nem tenha visto o acidente, ou se viu, não percebeu que o ator principal do espetáculo era eu. Há também a possibilidade dela ter ficado feliz com o meu destino. Ela, ao ver o acidente, pode ter pensado, com toda a justiça do mundo, que morrer era pouco pra um homem como eu. São muitas as possibilidades e poderia gastar o pouco tempo que tenho tentando identificar uma como provável. O fato é que ela não estava lá.
Eu mereci todo e qualquer pensamento dela, tendo visto ou não o meu acidente. Não mereci qualquer tipo de perdão, se é que existem diferentes tipos de perdões.
Hoje ao sair de casa só tinha um destino. Era presenciar minha própria morte, mas não sabia disso, obviamente. Achava que ficaria a manhã inteira sentado no banco da pequena praça, em frente ao trabalho dela. Esperaria pacientemente que ela saísse pra almoçar. Durante a longa espera pensaria numa forma convincente de pedir perdão. Ensaiaria cada frase, cada palavra, cada silaba, que por acaso não fosse sincera. A espera também serviria pra eu refletir em tudo o que havia feito. Mesmo achando que esse “tudo” não era tão grave assim. Tendo certeza absoluta que ela havia exagerado ao dizer todas aquelas ofensas quando saiu de casa.
Esse era meu plano pra hoje. Mas como nem tudo é como a gente planeja, lá estava, naquele encontro marcado, involuntariamente, com a morte.
Ainda devia ter algum tempo, e isso era bom, já que ainda tinha algumas considerações a fazer. Não conseguia, por mais que me esforçasse, me arrepender do que fiz. Fiz por que quis e talvez fizesse outra vez se houvesse outra oportunidade. Não havia como se arrepender. Não havia como voltar atrás. Eu nem queria.
Ela não compreendeu. Não entendeu minha alma. Talvez tenha ocorrido o contrário. Quem sabe, não é mesmo?
Agora, nessa fração de segundo de vida que ainda me resta, consigo tempo pra pensar nisso. Pesar minhas atitudes e perceber que minhas certezas sempre foram absolutas e por isso, jamais consegui enxergar as verdades dela. Seus desejos e vontades sempre foram suplantadas por uma argumentação fundamentada no meu gigantesco ego.
Nesse momento vejo e lembro de todas as ocasiões em que ela, passiva e pacificamente, aceitou minhas decisões. Não eram simples opiniões sobre sua roupa, filmes a assistir, sabor das pizzas, sobre o jantar, sobre o almoço, sobre nossas parcas amizades, e sim decretos que não davam a mínima chance de recurso a ela.
Sim, eu fui assim. Eu a massacrei sob a sola do sapato como se fosse uma barata. Eu joguei fora tudo de bom que ela sentia por mim. Fui mesmo um desgraçado!
Era só meu aquele fim. Como poderia pedir perdão com as palavras todas da boca pra fora?
Se tivesse conseguido atravessar a rua. Se tivesse falado com ela. Ela teria voltado pra mim. Podia ver o brilho naqueles olhos, lindos! Aquele brilho que significava um perdão irrestrito. Sem perguntas, sem por quês, sem lembranças, sem vingança. Nos beijaríamos e de mãos dadas iríamos almoçar. E nesse ponto, recomeçaria a relação anormal de opressão que havia entre nós. Tudo igual antes.
Os médicos chegaram, com o alarme habitual em ocasiões de emergência. Não vi e nem ouvi, mas imaginei a ambulância do resgate abrindo caminho naquele transito infernal com luzes ligadas e com o barulho ensurdecedor da sirene. Me sentia um sujeito importante. Tudo aquilo era pra mim. Toda aquela atenção dedicada ao meu alquebrado corpo me fez sentir menos culpado pelos meus crimes. Me fez pensar que, apesar de merecer o castigo, ainda tinha algum valor.
Afastaram os curiosos. Não me lembro se foram os médicos ou os policiais que fizeram isso! Bem, não importava. O que importava era que os olhares sobre o que restava de mim se reduziram a três. Um dos médicos segurava um balão de oxigênio e me olhava com um desdém que me incomodava. Sentia que aquele médico não tinha paixão pelo seu trabalho. Olhava pra mim e eu me sentia o resto do mundo. O pior dos animais ainda seria melhor do que eu. Desviei o olhar pro outro médico. Este, veio, trôpego, carregando uma maca. Tinha a expressão preocupada que todos os profissionais deveriam carregar no rosto. Talvez pensasse na minha morte e estivesse com medo. Talvez fosse seu primeiro atendimento e aquilo o estivesse assustando. Vai saber? São apenas possibilidades.
Por último notei naquele que me atendeu diretamente. Foi impossível não notar, já que ele estava bem pertinho de mim. Face a face comigo. Falava coisas que eu não entendia. Eu me vi nos seus olhos. Vi um brilho naquele olhar. O mesmo brilho que havia no olhar dela. Aquele olhar me pedia pra não fechar os olhos, pra que eu me mantivesse acordado, lúcido. Eu estava lúcido. Nunca fui tão lúcido quanto naquele momento.
Tudo ficou confuso de repente. Enxerguei naquele olhar, pela última vez, a vida que perdia e pude sentir o aconchego da morte. Não fiquei triste, nem decepcionado. Um acidente me fez ver tudo aquilo que fui pra ela. O brilho no olhar daquele médico me fez, humilde e pateticamente, pedir perdão.

Quando o despertador tocou, ela já estava de pé. No banheiro, em frente ao espelho, aos soluços, chorava desesperada. A noite havia sido a pior de todas. Seus olhos, com olheiras enormes, denunciavam um sono que não viera. Escovou os dentes, arrumou os cabelos, fez uma leve maquiagem, vestiu-se com a roupa de trabalho, calçou os sapatos, de salto é claro, pegou sua bolsa e saiu. No ponto de ônibus, enquanto esperava, teve tempo de enviar uma mensagem pra mim.

Já é meio dia e está quase na hora dela sair pro almoço e eu continuo sentado neste banco de praça. Leio, indeciso, mais uma vez, a mensagem que ela enviou esta manhã:“Não almoçaremos juntos hoje”. Não sei se atravesso a rua agora ou espero o sinal fechar.

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