sábado, 12 de abril de 2008

João Ninguém

Sou eu. Moro em lugar nenhum. Aqui existem muitas pessoas como eu. Existem também muitas outras que são ninguéns melhores do que eu. A vida é tranqüila, com poucos fatos que mereçam menção nesse humilde relato. As vezes acontecem algumas coisas que ninguém se interessa em saber. E esse sou eu. Eles olham pra mim e por eu ser ninguém, acham que alguém como eu nunca, jamais, vai mudar de condição. Eu olho pra eles e faço exatamente a reflexão inversa. Tenho pena, pois apesar deles serem ninguéns muito melhores do que eu, acredito cegamente que na verdade eles nunca se tornarão ninguéns como eu.

Não sou melhor do que eles. Não sou mais bonito, nem mais inteligente, não tenho o melhor automóvel, nem a casa mais bonita, não freqüento os melhores ambientes, não me visto com roupa de grife, muito menos tenho mais dinheiro. Mas tem uma coisa deles que me causa inveja. E a inveja é um sentimento muito bom, no meu caso. As vezes dói. Fico aqui fazendo os meus parafusos e nos pensamentos que saem das pontas dos meus dedos pra ir parar nesse longo e chato texto, imagino como seria bom viver superficialmente como eles. Ignorar completamente os outros, ou melhor, nem percebê-los. Ou melhor ainda, ter a certeza que todos em volta não são ninguém, aliás, são ninguém. Alguém poderia achar que estou errado. Mas eu reafirmo. Ser como eles deve ser o máximo.

Mas isso nunca vai acontecer. Primeiro por que nessa cidade não existe alguém. Segundo por que os ninguéns daqui não fariam esse tipo de pergunta. Não percebem alguém além dos seus próprios mundos. Se fossem como estrelas, com certeza não haveria um planeta sequer girando em torno deles. Levo minha vida do jeito que dá. Tento romper todos os obstáculos que me separam dessa Grã categoria de ninguéns especiais, não me contento com o que já conquistei, pois se vocês não sabem, eu era um ninguém da base, da turma que carrega o piano.

Agora já melhorei muito. Hoje subi um degrau e posso me orgulhar de poder sentar na banqueta para tocar as mais maravilhosas melodias no belo piano, que não mais foi carregado por mim. Mas ainda quero mais. Ainda vou ser um ninguém melhor. Ainda pisarei no tapete vermelho na entrada do teatro. Reservarão pra mim um camarote vip, com atendimento personalizado e lá de cima, com a visão privilegiada, poderei curtir o espetáculo como os outros ninguéns, sem dar a mínima importância aos demais espectadores, nem perceber que o piano está lá e que é tocado por ninguém, carregado por ninguém.

Enfim, poderei então olhar para os outros e esquecer que um dia fui um ninguém como eles. Mas enquanto esse dia não chega... paciência. A inveja que tenho deles é uma das coisas que me move, sempre, rumo a um lugar que é meu também. A outra coisa que me impulsiona é o desprezo que os outros ninguéns, os especiais e melhores que eu, sentem por qualquer um da minha classe, isso me faz querer com mais ganância o lugar deles. João ninguém sim, mas ninguém pode me acusar de permanecer, aceitar, passivamente como um cordeiro, o destino imposto por eles.


SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

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