terça-feira, 29 de abril de 2008

Pensando em que?

Já fazia mais de duas horas que aquele rapaz permanecia sentado. Um banquinho bem abrigado à sombra de uma enorme árvore, daquelas que tem folhas bem grandes e uma deliciosa sombra, e que, não por acaso, não sei o nome. Estava ele. Sozinho. Por um momento achei que estivesse, mas logo percebi a presença incontestável daquela enorme criatura que fornecia sua sobra aquele rapaz. Ele parecia triste, talvez porque a sombra o envolvesse numa espécie de nevoeiro invisível, que parecia impedi-lo de levantar a cabeça. Não ria. Não falava. Às vezes parecia dormir.

De repente alguma coisa mudou. Continuava de cabeça baixa, mas o nevoeiro imaginário, que provavelmente é fruto de minha própria imaginação, se dissipou. Vi caminhando lentamente em sua direção um pequeno pássaro. Não sei qual era. Mas isso também não importa agora. O pássaro parecia estudar cada passo que dava, buscando não assustar aquele pobre rapaz. Bicava aqui e ali. Dava pequenas corridas de um lado para o outro. O rapaz nem percebia. O pássaro percebeu que não corria perigo e avançou. Voou e pousou no assento do bando. Nem assim conseguiu chamar a atenção. Bicou sua mão, mas não foi capaz de tirar aquele rapaz do transe onde se encontrava.

Vi uma luz intensa. Branca. Quase me cegando. Tinha sido um sonho. Olhei ao meu redor e percebi que continuava no mesmo lugar. Naquele lugar horrível. Um quarto todo branco. Com cortinas brancas. Móveis e roupas de cama, tudo branco. Senti um desespero. Lembrava-me do sonho. Parecia sentir a densidade daquela sombra. Abria a janela e fiquei por algum tempo tentando me localizar diante daquilo tudo que estava acontecendo. As pessoas lá embaixo também estava todas vestidas de branco. Todas meio atrapalhadas, andando de um lado para o outro. Havia muitas e enormes árvores. Estavam floridas e suas flores contrastavam com o clima de tristeza que se abatia sobre aquelas pessoas. Fiquei olhando por algum tempo aquela paisagem e no entanto foi como se estivesse num outro mundo e enxergasse aquelas pessoas como anormais. Elas eram anormais. Deu vontade de ir até onde eles estavam. Falar-lhes do meu sonho. Perguntar porque tanta tristeza diante daquele espetáculo que a natureza proporcionava?
Desci até aquele imenso jardim e por incrível que pareça não havia escadas no prédio onde eu estava, mas de alguma maneira tive que desce por algum lugar. Olhei pra cima e tentei localizar a janela onde eu estava há poucos instantes e não consegui encontrar. Não havia janelas. Não havia prédio. Olhei ao meu redor e aquilo foi muito estranho, pois estava bem no meio de uma enorme multidão. Todos de branco. A mesma paisagem que lá de cima, do quarto, parecia alegre e festiva, agora se revelava desoladora e, pra ser sincero, fazia uma grande confusão em minha cabeça, meus sentimentos já não estavam claros. Tentei identificar alguma pessoa conhecida no meio daquele turbilhão de rostos. Em vão. Aquelas pessoas não estavam ali. Elas olhavam pra mim, mas era como se enxergassem através do meu corpo. Me senti nu. Despiam-me com seus olhares invasivos, pareciam estar descobrindo todos os meus segredos. Coisas que eu tinha medo de trazer à toda e agora espontaneamente eu revelava àquelas pessoas. Falava sem me pronunciar. E eles ficavam satisfeitos em conhecer todas as minhas verdades.

Comecei a chorar. Quis desaparecer daquele lugar. A sensação que eu tinha era que eles iriam entram em minha cabeça. Comecei a correr desordenadamente. Descontroladamente em qualquer direção. Não importava. Queria me livrar daqueles olhares indiscretos. Tudo muito rápido e instantâneo. Novamente uma luz branca me cegava os olhos. Sentia os meus sentidos à flor da pele. A mais suave brisa parecia uma tempestade. O calor era insuportável e ao mesmo tempo sentia frio. Uma tremenda confusão, que fez com que minha cabeça parecesse enorme. Achei que fosse explodir. Aquela luz diante dos meus olhos. Somente luz. Não havia mais nada. Nem quarto. Nem cama. Nem gente. Nem eu mesmo me encontrava naquele lugar e o mais estranho é que eu também não me sentia.

Aí está você. Deve ter sofrido bastante. Seu rosto tem uma terrível expressão de sofrimento. Seus últimos momentos devem ter sido muito difíceis. Tem uma aliança na mão esquerda. Tem esposa, então provavelmente deve ter deixado um filho ou quem sabe dois. Qual será o nome desse rapaz? Não importa, talvez seja João, Pedro ou Antonio. Com certeza sua vida foi bem complicada. Sua aliança esta toda riscada e suas mãos são calejadas. Devia trabalhar em serviço pesado, ou na roça, ou quem sabe na construção civil. Pra ir trabalhar tinha que se levantar às cinco horas da manhã. Saia sempre sem tomar café, pois não dava tempo, se tomasse, perdia o ônibus e se perdesse o ônibus também perdia o emprego. E isso não podia acontecer, pois sua família dependia dele. Seu filho ou seus filhos dependiam dele. Provavelmente você foi um bom pai e um bom marido. Um pingente com o nome de uma mulher, provavelmente sua mulher. Você também foi muito romântico, afinal qual homem carrega junto consigo uma coisa dessas hoje em dia?

Não gostava muito de se barbear nem de cortar o cabelo.

Fiquei admirado. Era um sujeito muito ansioso, pois quase não existem unhas em seus dedos. Talvez fosse pela extrema responsabilidade com sua vida. Medo de não conseguir honrar seus compromissos. Medo de perder o emprego. Um enorme medo de ficar doente, e assim não poder trabalhar e ser despedido. Medo, talvez, de envelhecer ou morrer antes de deixar o devido amparo à família.

Pagava aluguel. Uma casa horrível, provavelmente num lugar igualmente horroroso, com condições precárias. Seus filhos nem tinham onde brincar. Na rua não podiam, pois tinha um esgoto enorme a céu aberto. Dentro de casa, nem pensar, pois eram somente dois cômodos e o banheiro, se é que aquilo podia se chamar de banheiro. No seu bolso esquerdo há um recibo de aluguel. Muito caro. Pra você tudo devia ser caro.

Mas agora morreu e não precisa mais se preocupar com nada. Apenas fechar os olhos e descansar. Sua mulher com certeza vai arrumar outro marido, pois ainda é bastante jovem. Vai sofrer e vai chorar bastante. Talvez demore pra esquecê-lo, mas vai conseguir. Porque provavelmente, você que sempre foi tão preocupado e atencioso, deve ter recomendado a ela, que se acaso você morresse, pra que ela não ficasse sozinha. Tinha pedido a ela que arranjasse alguém pra ajudar a cuidar dos meninos. Até isso você deve ter pensado.

Agora aí deitado, inerte. Pensando em que?

Seu pai precisou partir filho. Foi morar no céu, junto com as estrela! Respondia aquela pobre mulher a seu filhos sempre que este a indagava sobre seu pai. Não adiantava tentar remendar a história. O menino, mesmo acreditando em sua mãe e nas histórias que ela contava, sabia que seu pai havia morrido. Não voltaria a vê-lo novamente. A viúva, coitada, toda vez que o menino fazia esse tipo de pergunta, se desmanchava em pranto e ficava inconsolável. Seu marido era um bom homem. Um lutador. Mas do que adiantara todo o seu esforço. Se perguntava a pobre viúva. Morrera jovem, sem ver seus filhos criados. Não conseguiu construir a casa com que sonhara morar desde quando casaram-se. Agora não realizaria o sonho de acompanhar seus filhos na escola, levá-los, tomar a lição, pra, segundo ele – Ser gente na vida, ganhar dinheiro e ter alguma coisa!!! Acabaram, todos os sonhos se foram.

Novamente do alto daquele prédio. Numa janela, dessa vez era muito pequena e estava tudo muito escuro ao meu redor. Somente aquele quadradinho iluminado à minha frente. Não sabia se estava sentado ou deitado, mas parecia estar flutuando e aquela sensação me fez perceber que o sonho ou a alucinação havia acabado e tudo agora se tornava mais claro pra mim. Eu estava acordado. Tinha que estar. Aquilo não podia ser falso.

Através daquela pequena janela comecei ver coisas, no inicio estranhas, mas logo fui me acostumando. Eu vi um rapaz sentado sob a sombra de uma árvore. Uma mulher chorando desesperadamente. Uma casa, minha casa, todo enegrecida. Me aproximei mais e vi também uma criança, porém não chorava. Nos seus olhos eu vi um sentimento horroroso que não devia existir no coração das crianças. Ela sentia saudades e eu vi naquela criança que aquele sentimento se transformaria em algo que ela não seria capaz de dominar. Seria transformada numa criatura amarga e infeliz.

Não consegui entender o porque. Não conhecia a mulher que chorava, muito menos os meninos de olhos revoltados e rancorosos. Mas o homem sentado à sombra me assustou. Olhei bem pra ele. Cheguei bem perto. Olhei dentro dos seus olhos e vi. Me vi. Dentro seus olhos me encontrei. Percebi tudo afinal.

Tudo se apagou momentaneamente. Voltei ao jardim onde já havia estado antes. Agora com mais clareza, soube que todas aquelas pessoas estavam na mesma situação que eu. E elas, individualmente, também não conseguiam ver em mim alguma consciência. Pra elas eu também era mais um doente.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

Um comentário:

Gabriela Luna disse...

Muito bom esse texto. No começo achei que fosse um hospício, com essa coisa de ser tudo branco e tal. Jamais imaginaria um cemitério. Ou talvez seja a minha pequena fixação por loucura e histórias de loucos/gênios incompreendidos no hospício. Sei lá. O estranho é que era pra ser comovente, eu imagino, mas eu sei que a maioria das pessoas que estuda à noite lá no meu colégio provavelmente acorda às cinco horas da manhã pra trabalhar e dorme depois da meia-noite, enquanto o organismo implora por oito horas de sono tranquilo. Uma garota da minha sala mora na favela. Eu já fui na casa dela. Enquanto eu acordo às seis da manhã, não tomo café e almoço de graça na escola. Meu pai ganha seis reais por aula, sei lá, acho que salário de professor é isso. E minha mãe, que trabalha no caixa, tem coragem de dizer que somos de classe média, porque enquanto a minha coleguinha mora numa favela, nossa bela casa é apenas ao lado de outra (o bairro onde moro é cheio delas). Já vi tiroteio pela janela, e quando escuto apenas uma explosão aleatória, sei que é o sinal pra dizer que as drogas chegaram na boca ou algo do tipo. Mas eu tenho computador. Engraçado, né? Ouvi dizer por aí que quem corre atrás consegue o que quer. Pena que eu acho meio difícil ter vontade de correr atrás de alguma coisa quando tudo parece tão negro e sem saída. Boa sorte (porque talvez só dê pra contar com a sorte mesmo) pra você e pra todos os escritores amadores e blogueiros anônimos.