terça-feira, 29 de abril de 2008

Felicidade

Manelão tinha um galo índio que cantava exatamente às quatro e meia da manhã, todo o santo dia. Ele ficava empoleirado em cima da cumeeira da casa a noite toda, quem via o galo lá durante a noite dizia que parecia uma estátua, pois ele nem se mexia. O galo mal dava sinal de enfraquecer a voz e Manelão já tinha um substituto. Mantinha um time de galos de prontidão para substituição imediata. Dizia ele que “coisa essencial em um sítio era um galo”. Gostava de se gabar de ter no seu terreiro os melhores galos cantadores da redondeza. Só não gostava de gente que colocavam os bichinhos pra brigar. Seus galos eram de serventia apenas pra cantar. Pois pra Manelão horário era coisa séria e ele era extremamente rígido com seus compromissos. Às cinco horas, pontualmente, ele já tinha preparado o café, tomado, colocado um pouco numa garrafa e já estava em pé bem em frente do grande pé de figueira, onde, todo dia ele realizava o mesmo ritual.

Subia no galho mais alto daquela imensa árvore e lá de cima podia olhar toda a sua propriedade, que se estendia desde a barroca do rio Cruzante até o pé do morro da Caçarola, lá longe onde sua vista não alcançava. Rezava, agradecia a deus por tudo que tinha. Agradecia pela sua família, pelos seus bichos, que sempre gozavam de boa saúde. Após isso ele descia. Com muito cuidado, pois já não era tão jovem como na época em que começara com aquele costume.

“Bom dia Janete!!” – berrava Manelão entusiasmado. Janete era o nome da sua única vaca. Única não porque ele não tivesse condições de ter mais vacas, mas é que ele era bastante criterioso na aquisição dos seus bichos. Ele acreditava que se não fosse pra ele ter outras vacas iguais a Janete, ele não queria. – A Janete deveria ser uma raça, fico só imaginando o pasto cheinho de Janetes!!! – suspirava Manelão. Tirava o leite, que era suficiente pra sua família. Dava pro queijo, qualhada, bolo, doce. Quando voltava pra casa o dia já tinha amanhecido. Muitas vezes ele, ao atravessar um pequeno bosque que ficava entre o curral e sua casa, parava e ficava hipnotizado com todos os presentes que Deus havia lhe dado. Os pássaros cantavam as mais belas melodias dentro do seu quintal. As árvores tinham uma beleza sem igual. Ficava alguns segundos nesse estado de transe para logo acordar, ainda tinha que tratar das galinhas e dos porcos.

Aquele dia, como todos os outros, fora um longo dia de trabalho. Porém a noite não seria nada tranqüila. Ele tinha acabado de fazer sua ultima tarefa do dia e estava louco pra chegar em casa, tomar banho, comer e dormir, mas quando colocou os pés dentro de casa, foi recebido aos trancos e barrancos pela sua esposa. Ela estava furiosa. – O que aconteceu mulher? – perguntou Manelão pacientemente. – Não se faça de inocente! – gritou sua mulher descontroladamente.

Já se passaram vários anos de casamento com este homem que eu mal conhecia. Pra ser mais exata, eu ainda não conheço. Manelão!! Vê lá se isso é modo de uma pessoa se chamar. Fui obrigada a me casar com ele. Gostava de outro, mas ele não era ninguém. Não tinha onde cair morto, coitado. Já o tal do Manelão tinha. Quer dizer, também era um pobre diabo, mas segundo meu pai, ele tinha uma bela propriedade, que se estendia desde a barroca do rio Cruzante até o pé do morro da Caçarola. Baseando-se nisso, meu pai não pensou duas vezes em arranjar o casamento entre nós. Foi um tragédia, pra mim é claro, pois o safado do Manelão estava em êxtase.

Uma semana de casamento, no entanto nós ainda não tínhamos nos tocado. Eu era muito arredia e rebelde. Mas ele não se importava. – Uma hora você vai ter que ceder. – dizia ele calmamente. Ele não sabia o quanto aquela paciência me irritava. Tinha vontade de matá-lo bem aos pouquinhos e este sentimento se estendia também ao meu pai, pois ele tinha sido o culpado de tudo. Ah.. Miguelito, se fosse com você tudo podia ter sido diferente.

Detestei o lugar. Meu ódio por aquele homem e o sentimento de frustração me cegava a ponto de eu achar horrível aquelas lindas paisagens que juntamente com a casa, parecia um quadro. Odiei a casa, que era muito bem organizada. Limpa. Bem feita. Num bom lugar e com uma ótima vista. Não gostei justamente por isso. Esperava o contrario. Queria que fosse tudo horrível. Que a casa onde moraríamos fosse um pardieiro, sujo como um chiqueiro. Mas não era. Não tive justificativa pra reclamar. Minha última esperança era de que o famigerado Manelão fosse um péssimo marido, bebesse, me espancasse, assim meu pai me aceitaria de volta. Mas o desgraçado nem pra isso prestara. Era gentil e a cada sua gentileza sua eu respondia com algum objeto na parede. Ele não reagia. – Não tem problema amor, foi só um acidente! – dizia ele tranquilamente. Sua paciência era o combustível para minha impaciência.

Seu Manelão entrou, arrastou uma cadeira, sentou-se num canto da cozinha e ficou olhando pra sua esposa pacificamente. Ela estava num estado de nervos que até ele, com toda sua paciência, estranhou. Tremia-se toda. Gesticulava. Puxava os cabelos. Seu beiço tremia. Manelão se levantou, olhou bem pra ela e disse: Vou tomar um banho e dar um pulinho na cidade, quem sabe quando eu voltar você está mais calma... Ela nem olhou pra ele, continuou naquela posição, como se estivesse presa em um mundo que não fosse seu.

Manelão vestiu sua melhor roupa, calçou os sapatos. Foi até a varanda pra se despedir e teve que correr, se não ela lhe acertava um vaso de flor na cabeça. E lá se foi Manelão, rumo à cidade. Nada tirava daquele homem o otimismo e a alegria. Enquanto caminhava prestava atenção aos menores barulhos. O vento balançando o capim na beira da estrada. O canto dos pássaros noturnos. Olhava as estrelas e a lua. Tudo era belo, a noite era como se fosse, pra ele, a princesa do reino onde o dia era o rei. Ele de vez em quando olhava pra trás pra ver se a luz da varanda já tinha se apagado. Na última vez que olhou ainda estava acesa e aquele ponto era o último que dava pra ver a varanda da sua casa. – Daqui a pouco ela se cansa e vai dormir, amanhã vai ser outro dia! – dizia ele, convicto de que no outro dia tudo voltaria ao normal. E o normal pra ele sempre foi agüentar a fúria dela pacifica e passivamente. Nunca reagira. De maneira nenhuma, a não ser inventar alguma inesperada visita a cidade.

Caminhou durante uns quarentas minutos, no máximo, e conseguiu uma carona. Um caminhão boiadeiro que passava, parou e ele foi sentado em cima da carroceria, com os pés balançando sobre as cabeças dos animais. Até aquilo era motivo de felicidade pra ele. Olhava aqueles animais e sentia pena, mas ao mesmo tempo sabia que era preciso sacrificá-los. Chegando à cidade, o caminhão parou e ele desceu. Agradeceu ao motorista, propôs pagamento pela carona, que o motorista rejeito sumariamente. – Deus lhe pague então amigo!!! falou a agradecido. Atravessou a rua, andou alguns metros e entrou num bar. Nunca tinha entrado ali, só queria comprar cigarros. Mas acabou ficando. Se enturmou com o pessoal. Jogou “esnuque”, baralho e até dominó. Já estava tarde quando resolveu tomar a saideira pra ir embora. Sentou-se num banquinho perto do balcão e pediu a bebida. O dono do bar veio atendê-lo rapidamente. – Rapaz, mas que crise ein!!! – falou todo comunicativo o dono do botequim querendo puxar conversa. Seu Manelão assentiu com a cabeça e não deixou ele levar a garrafa mais. Encheu o como novamente e virou. Seria preciso bastante combustível para o longo caminho de volta ao sítio.

Era um lugar esquisito. Alguma coisa como Bar do Bileque. Notei o nome porque estava escrito em vermelho com letras garrafais na fachada do prédio. Apesar disso era um legitimo botequim de fim de rua. Uma mesa de bilhar, algumas mesas de jogos no fundo. Um balcão enorme, com um monte daqueles banquinhos de pernas compridas encostados perto. Todos os banquinhos, ou quase todos, tinham dono. Figuras de todos os tipos, ali se encontravam os brasileiros. Depois desse rápido reconhecimento do território, encontrei um daqueles banquinhos desocupado e tratei logo de me sentar. Queria comer alguma coisa logo, pois dali a pouco estaria partindo. Ao sentar, fui atendido rapidamente por um simpático senhor. Era o tal do Bileque. Todos o chamavam assim, logo...

O senhor Bileque trouxe o meu pedido e continuou por perto onde estava numa animada discussão com um sujeito sentado ao meu lado. Me interesse pela conversa deles e fiquei prestando atenção.

Falavam de felicidade. Seu Bileque dizia que era feliz, apesar de faltar-lhe algumas coisas. Já o sujeito do meu lado, que por sinal já estava bem alto, fazia uma única reclamação, deus havia lhe dado tudo e até mais do que ele merecia materialmente, mas o grande amor da sua vida não o amava. Continuaram a conversa algum tempo ainda até que seu Bileque olhou pra mim e de supetão perguntou: E você, o que acha? Quase engasguei, pois apesar de estar prestando atenção na conversa, não imaginava essa situação, fiquei sem reação. Era como se eles soubessem o que eu estava pensando e que eu tinha também algumas reclamações a fazer ou sugestões a dar.

O sujeito ao lado, pela primeira vez olhou pra mim. Percebi um homem angustiado. Dentro de seus olhos havia uma felicidade realmente incompleta. Era como se faltasse um pedaço daquele homem. Ele ficou alguns segundos olhando pra mim, como se me estudasse, como se tentasse adivinhar qual seria a minha resposta para sua pergunta, como se eu fosse a solução pra aquele dilema em que vivia sua alma e a extrema contradição da sua vida

O que você faz da vida? Perguntou finalmente. Eu, de passagem por aquele lugar, com a certeza de que nunca mais iria ver tais pessoas, num “insight”, respondi:

- Sou vendedor de idéias.
- Vendedor de idéias, como assim?
- Não vai adiantar explicar agora, por que não tenho tempo.
- Tudo bem, então me vende uma, nem que for uma bem pequena.
- Agora quem não entendeu foi eu senhor. O que o senhor quer exatamente?
- Eu quero ser feliz.
- Ah!!! Isso é muito fácil.

Aquele senhor então olhou pra mim com uma cara de espanto e quis saber se eu era feliz. Respondi que sim e ele fez uma cara que eu sabia que era de inveja e ao mesmo tempo de orgulho. – Me ensina? – pediu, quase num sussurro. Então eu disse que ele já era feliz e que não precisava procurar em outro lugar, pois a felicidade estava dentro dele há muito tempo. Ele então perguntou se sua mulher um dia poderia amá-lo. Após saber toda a história, experimentei uma opinião.

- Você podia deixá-la ir. Ela não é sua felicidade. Sua felicidade está em você mesmo. Nas coisas que você dá valor. Na beleza que você vê ao seu redor. E isso ninguém vai tirar de você. Sua esposa, provavelmente também é infeliz e muito provavelmente também não é culpa sua. Parece-me que vocês buscam felicidades diferentes e nunca encontrarão um no outro. Você já é feliz, deixe-a ser também.
Não faço a mínima idéia do por que daquela resposta. Se formou em minha cabeça e fui falando espontaneamente, como se fosse algo que eu realmente acreditasse e que fizesse parte do mel rol de conceitos, ou ainda, talvez eu estivesse repetindo algumas das muitas opiniões sobre a vida expressas nos muitos livros em que já lera. Enfim, o fato foi que aquele homem havia se impressionado com minha fala. Mas antes dele falar alguma coisa, levantei e sai apressado, havia chegado minha hora.

Era tudo que eu queria que ele fizesse. Não agüentava mais. Todos aqueles anos convivendo com Manelão e eu não cedi um milímetro sequer. Era a mesma pessoa do dia do nosso casamento. Frustrada, magoada e ressentida com a vida. Eu fui enganada pelo destino. Mas finalmente tinha me decidido. Abandonei tudo, pois nada daquilo tinha valor pra mim. – Manelão!! – não estava nenhum pouco preocupada com ele. Tinha certeza que, apesar de tudo indicar o contrario, ele sempre esteve olhando exclusivamente para o seu próprio umbigo. Ele teve como evitar tantos anos de sofrimento, tanto meu como dele, mas ele preferiu arriscar nossas vidas nessa tentativa de conquistar o amor à força. Não conseguiu. Teve o que mereceu durante todos esses anos. Não queria que ele ficasse com nada, nenhuma lembrança minha. Desejei nunca ter existido pra ele.

Fui até o quarto, arrumei algumas roupas numa pequena sacola e bem tranquilamente sai. Fiquei por alguns minutos olhando a noite. O céu, as estrelas, a lua. Olhei cada detalhe daquele lugar que tinha passado quase toda minha vida. Apesar do escuro, era como se estivesse dia, pois enxergava nitidamente tudo. O curral e os animais que dormiam naquela hora da noite. Janete ruminando bem tranqüila, encostada na cerca olhando pra mim. O galo empoleirado em cima da casa que tanto me irritara e agora não conseguia imaginar-me sem seu canto. Olhei mais uma vez pra aquilo tudo e fiz o que tinha de fazer.
De longe o clarão daquelas chamas iluminava o caminho. Não olhei pra trás. Já não tinha mais nenhuma ligação com aquele lugar e nada me fazia desviar do meu destino. Agora eu seria a senhora da minha própria vida. Quando vi ele se aproximar, tive a certeza de que tinha feito a coisa certa. Me encontrava, naquele momento, com a felicidade que um dia me fora roubada.

Tudo era negro. Canudos de fumo subiam dos restos do que foram um dia o sitio de Manelão. Ele olhava perplexo. Já havia amanhecido e ele ainda não conseguia esboçar nenhuma reação. Não chorou. Sua casa destruída. Todos os seus animais mortos. Seu galo e a vaca Janete também. Nem quando encontrou seus restos mudou sua expressão resignada. Não restou definitivamente nada de tudo aquilo que um dia tinha sido seu mundo. O mundo de seu pai e de seu avô. Não chorou. Nenhuma única lágrima. Pensou na marida. Provavelmente estava morta também. Não sentiu tristeza, sentiu como se tivesse a libertado
Olhou ao longe e viu o pé de figueira também queimado. Tudo destruído. O pequeno bosque perto também estava queimado. Aproximou-se do que restou daquela grandiosa árvore, subiu até onde deu. Agradeceu. Tinha finalmente encontrado a felicidade. Era finalmente livre pra satisfazer a si próprio.

Sozinho, sem jamais olhar pra trás, agora ele era feliz.

SILVA, Edmilson R. Textos Sobre Assuntos Aleatórios, Mas Sem Importância Alguma. Edição Única. Kaloré: Liberdade, 2008.

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